segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Desafio global: a segurança no espaço, artigo de José Monserrat Filho

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Desafio global: a segurança no espaço

José Monserrat Filho, chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira

“A governança mundial está sendo reconstruída. O mundo não pode ser gerido por pequenos grupos que se auto-intitulam tomadores de decisão.” (Ministro Celso Amorim, na Conferência do Desarmamento, em 15 de junho de 2010)

Brasil e Estados Unidos (EUA) afirmaram “o compromisso com a segurança no espaço e decidiram iniciar um diálogo nessa área”.

É o que diz o Comunicado Conjunto da Presidenta Dilma Rousseff e do Presidente Barack Obama, assinado em Brasília, no dia 19 de março de 2011, quando da visita ao Brasil do mandatário norte-americano. Esse intercâmbio de ideias focado na segurança espacial deve iniciar-se em breve no Brasil. O Itamaraty, certamente, prepara-se para o diálogo sobre um tema crucial, mas pouco estudado e discutido no país, reunindo os nossos especialistas em assuntos espaciais de relevância estratégica global.

A segurança espacial tende a ser definida, em suma, por meio de dois elementos-chave:

1) O acesso seguro e sustentável ao e uso do espaço; e

2) espaço livre de qualquer tipo de ameaças. Tais elementos estão em linha com os principais instrumentos jurídicos internacionais – resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas, normas sobre conflito armado e relevantes tratados multilaterais. Ante os múltiplos usos do espaço e a crescente gama de atores espaciais, urge uma visão abrangente e holística para alcançar uma compreensão razoável da segurança do espaço. (Ver <http://www.spacesecurity.org/>)

Para ter livre acesso ao espaço, usar seus recursos de modo seguro e sustentável, e livrá-lo de qualquer tipo de ameaça produzida pela espécie humana, há que preservar o espaço do armamentismo. Sua segurança deve fundamentar-se no Direito, nos acordos negociados de boa fé entre toda a comunidade internacional de países, não no uso da força.

Daí que a questão da segurança espacial passa hoje, necessariamente, pela Conferência do Desarmamento (CD) e pelo Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (COPUOS, na sigla em inglês). A CD está paralisada por um impasse que se prolonga há mais de doze anos. Os países não conseguem chegar a um consenso sobre pontos essenciais de sua agenda de trabalho. Duas questões levaram ao impasse: o calendário para debater a proibição da produção de materiais físseis para armas nucleares ou outros engenhos explosivos e o projeto de acordo, apresentado pela China e Rússia, proibindo a instalação de armas em órbitas da Terra, o emprego de satélites como arma e, em geral, o uso da força no espaço.

A posição dos EUA

O embaixador Gregory L. Schulte, subsecretário adjunto de Defesa dos EUA para Política Espacial, contou à imprensa em Washington, em 19 de julho de 2011, que autoridades do Pentágono e seus homólogos chineses convieram em debater o melhor modo de garantir o comportamento “responsável” de ambas as nações no âmbito cada vez mais complicado de segurança nacional no espaço. Para Schulte, os programas espaciais civis e militares chineses são "essencialmente um" e a China está investindo estrategicamente em suas capacidades espaciais e em armas destinadas a eliminar um sistema espacial inimigo, agindo por trás do desejo dos EUA de negociar o que ambos os países se comprometeram a acertar, em maio daquele mesmo ano.

O embaixador enfatizou que os EUA estão prontos para conversar com os chineses sobre estratégia espacial, sobre como entender o uso responsável do espaço e sobre como criar regras de trânsito e reduzir o risco de acidentes e erros de cálculo.

Na semana anterior, informara-se que os satélites espiões da China já podiam monitorar um determinado alvo durante seis horas por vez, igualando-os aos satélites americanos similares. E que, ao mesmo tempo, a China faz sérios progressos com seus avançados sistemas anti-satélites.

Schulte lembrou que o teste do sistema anti-satélite chinês, efetuado em 2007, gerou cerca de 14% dos detritos rastreados pelo Comando Espacial Estratégico dos EUA (STRATCOM, na sigla em inglês). E que a China desenvolve ampla linha de capacidades espaciais, desde os meios de interferências e lasers até outros tipos de recursos bélicos. Enquanto isso – comparou –, a nova Estratégia Nacional de Segurança Espacial dos EUA se concentra em defender os bens espaciais americanos e busca alinhar-se com outros países no uso responsável do espaço.

Schulte observou ainda: o aumento constante do número de países com atividades espaciais gerou um ambiente espacial dramaticamente mais lotado, levando os funcionários do Pentágono a se preocuparem com tudo, desde os detritos espaciais capazes de danificar os satélites americanos até a crescente militarização do espaço e a erosão da vantagem estratégica que os EUA tem mantido durante décadas.

A posição da China

Respondendo a Schulte, Li Hong, secretário geral da Associação Chinês de Controle de Armamento e Desarmamento, publicou no jornal “China Daily”, edição de 3 de agosto de 2011, o artigo intitulado “Tornar o espaço seguro para todos”, em que escreve:

“A segurança no espaço tem sido tema de interesse no processo global de controle de armamento. Desde os anos 1990, China, Rússia e outros países instam a comunidade internacional a promover um diálogo multilateral, para impedir a militarização do espaço e levar adiante propostas concretas visando assinar um tratado internacional destinado a impedir uma corrida armamentista no espaço. Mas os EUA têm usado todos os argumentos para recusar a negociação de um tratado, temendo que isso limite a manutenção e o desenvolvimento de seu sistema anti-míssil no espaço, e comprometa sua tecnologia espacial militar. Alguns americanos conservadores estão convencidos de que os EUA podem usar seu sistema e seus recursos para manter sua posição predominante no espaço. A seu ver, não é necessário negociar com outros países, porque eles são muito inferiores em termos de uso militar do espaço. Por isso, os EUA enfatizam a liberdade de uso do espaço. Em essência, os EUA querem estabelecer sua hegemonia sobre o espaço.”

Li Hong vai ainda mais longe:

“Afetados pela crise financeira, os EUA, no entanto, foram forçados a restringir o desenvolvimento de sua tecnologia espacial e cancelar o programa do ônibus espacial. Esses fatos podem ser vistos como um revés para o avanço da tecnologia espacial no país. Mais importante ainda, os EUA perceberam que a sua vantagem no espaço enfrenta sérios desafios e que diminuiu a distância frente aos outros países. Isso só pode significar uma coisa: os EUA devem mudar sua política de segurança espacial. Os EUA lançaram a Política Nacional Espacial e a Política Nacional de Segurança no Espaço. Ambas enfatizam a cooperação em tecnologia espacial com os aliados, e o diálogo com Rússia, China e outros países para evitar atos "irresponsáveis" no espaço.

Mas deve-se notar que os EUA procuram cooperar com os aliados para integrar e usar os recursos deles, o que viria cobrir a falta de investimento nos EUA e ajudar a manter sua liderança em tecnologia espacial. As conversações pretendidas serias focadas em seus dois concorrentes potenciais, Rússia e China, para regular e restringir seu desenvolvimento e impedi-los de desafiar a hegemonia espacial dos EUA. Esta é uma mentalidade típica da Guerra Fria. A avidez dos EUA em estabelecer um diálogo com a China reflete sua incerteza ante os desafios da segurança no espaço.”

Posição da Europa

Tentando superar o impasse na CD, a União Europeia lançou, em 2008, um projeto de Código de Conduta para Atividades Espaciais, que ganhou versão revisada em setembro de 2010. O projeto considera que “o lixo espacial é ameaça às atividades no espaço exterior e potencialmente limita a implantação e a exploração eficazes de capacidades espaciais associadas" e propõe que "a formação de um conjunto de melhores práticas que visem garantir a segurança no espaço torne-se um complemento útil do Direito Espacial Internacional”.

O Código, que abrange atividades civis, comerciais e militares, busca "melhorar a segurança e previsibilidade de atividades no espaço"; valoriza "as iniciativas dirigidas a promover a segurança, as garantias e a paz no espaço, por meio da cooperação internacional"; e reitera "o compromisso de solucionar por meios pacíficos qualquer conflito em torno de ações espaciais".

Ademais, defende o livre acesso ao espaço para fins pacíficos; o respeito total à segurança e à integridade dos objetos espaciais em órbita; a responsabilidade dos países de promover a exploração pacífica do espaço, e de adotar "todas as medidas adequadas para impedir que o espaço torne-se área de conflito"

O Código, contudo, é instrumento voluntário, não obrigatório. Não impõe qualquer dever aos países que o subscreverem. Seu exame pelos organismos das Nações Unidas, como o COPUOS e a CD, não está previsto. Rússia, Índia e China podem não apoiar o Código, pois consideram que não foram devidamente consultados no processo de sua elaboração e desenvolvimento. Em meio a uma questão de tamanha relevância global, é difícil aceitar de bom grado um documento apenas declaratório, deixando ao arbítrio dos países a decisão de garantir ou não a segurança espacial.

Em 17 de janeiro passado, os EUA anunciaram oficialmente que vão trabalhar junto com a União Europeia e os países com atividades espaciais para desenvolver um Código Internacional de Conduta para as Atividades no Espaço Exterior, argumentando no item “Ameaças ao Espaço”:

“As ameaças ao ambiente espacial vão aumentar na medida em que mais nações e atores não-estatais desenvolvam e implantem contra-medidas aos sistemas espaciais. Hoje, sistemas espaciais e suas infraestruturas de apoio enfrentam inúmeras ameaças feitas pela mão humana, que podem negar, degradar, enganar, desativar ou destruir bens. Atos irresponsáveis contra sistemas espaciais terão implicações muito além do espaço, interrompendo serviços em todo o mundo, dos quais dependem setores de segurança civis, comerciais e nacionais. Dada a crescente ameaça de atos irresponsáveis ou não intencionais à sustentabilidade de longo termo, à estabilidade, à proteção e à segurança das operações espaciais, devemos trabalhar com a comunidade de nações com atividades espaciais para preservar o ambiente espacial em benefício de todas as nações e futuras gerações.”

A nota da Casa Branca acrescenta: “A Administração Obama compromete-se a assegurar que o Código de Conduta amplie a segurança nacional e mantenha o direito inerente dos EUA à legítima defesa individual ou coletiva, parte fundamental do Direito Internacional.”

Como se vê, os EUA pretendem trabalhar apenas com os aliados europeus e os países envolvidos com atividades espaciais. Os demais países – a maioria da comunidade mundial – ficam de fora, não participando das discussões sobre o Código e todas suas implicações em matéria de segurança no espaço. É justo e apropriado isso? Não seria como discutir energia nuclear somente entre os que a dominam, sem levar em conta seus efeitos para todo o mundo?

Posição do Brasil

O embaixador Antônio Guerreiro, representante do Brasil na Conferência de Desrmamento, declarou em Genebra, em 29 de janeiro passado, que o governo brasileiro apoia “o estabelecimento de um grupo de trabalho para negociar um tratado que proíba a instalação de armas no espaço, o uso de satélites como armas e qualquer tipo de ataque a equipamentos em órbita.

A criação de um grupo de trabalho sobre a Prevenção da Corrida Armamentista no Espaço Exterior (PAROS – Prevention of an Arms Race in Outer Space), já tradicional na Assembleia Geral da ONU, não implicaria qualquer desarmamento nuclear ou custos econômicos aos países detentores de armas nucleares, mas seria uma regulamentação mais relevante, legalmente vinculativa, prevenindo qualquer futura corrida armamentista no espaço. O Brasil aplaudiu a decisão da Assembleia Geral da ONU de aprovar a criação de um Grupo de Peritos Governamentais para estudar medidas de transparência e de fomento à confiança no espaço. Essas medidas, porém, embora importantes, não podem substituir um instrumento jurídico.”

Guerreiro sustentou que “o impasse no CD só será superado com flexibilidade e desejo de se comprometer, não apenas com um item da agenda, mas com todas as questões essenciais.” Ele agradeceu a iniciativa do Presidente da CD de apresentar propostas para discussão e expressou o desejo do Brasil de participar ativamente dos debates sobre a adoção de um Programa de Trabalho capaz de retomar a atuação produtiva da Conferência.

Ainda quanto à paralisação dos trabalhos do CD, vale registrar o que recordou em Genebra, no dia 15 de junho de 2010, o então Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim:

“Peço licença para fazer algo que não é do meu hábito: citar a mim mesmo. Não em virtude da sabedoria das palavras, mas pelas lições nelas contidas e pelo que aconteceu e não aconteceu a seguir. No ano 2000, logo após a bem-sucedida Conferência de Exame do Tratado de Não-Proliferação (TNP), o Brasil alertou que “a continuada paralisia da CD coloca um véu de dúvida sobre o valor do progresso alcançado em outras instâncias”.

(...) “A verdadeira questão com a qual nos deparamos é a seguinte: é ou não verdade que, a despeito de nossas prioridades e preocupações divergentes, compartilhamos todos o mesmo interesse universal no reforço do mecanismo multilateral para o desarmamento e a não-proliferação? E, sendo esse o caso, até onde estamos preparados para demonstrar a flexibilidade necessária para fornecer soluções construtivas, que não coloquem em jogo interesses vitais?”

Nenhuma resposta convincente a essa pergunta foi dada nos últimos dez anos.

Que dessa vez seja diferente.

Essa mensagem continua válida ainda hoje, em fevereiro de 2012.

O diálogo Brasil-EUA sobre segurança espacial não poderá ignorá-la.
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