segunda-feira, 28 de novembro de 2016

"Todos os países são iguais perante a lei?", artigo de José Monserrat Filho

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Todos os países são iguais perante a lei?

José Monserrat Filho *

“Eu não troco a justiça pela soberba. Eu não deixo o direito pela força. Eu não esqueço a fraternidade pela tolerância. Eu não substituo a fé pela superstição, a realidade pelo ídolo.” Rui Barbosa (1)

“Todos os países são igualmente membros da comunidade internacional. O grande, forte e rico não deve intimidar o pequeno, fraco e pobre”, disse o Presidente da República Popular da China, Xi Jinping, ao chegar a Lima, Peru, no dia 21 de novembro. Foi sua terceira viagem à América Latina desde 2013, quando assumiu a liderança chinesa. A China tem ampliado muito suas compras, seus investimentos na região e a cooperação espacial. A ferrovia bioceânica (2), ligando o Atlântico e o Pacífico pelo Brasil e Peru, e o Canal na Nicarágua (3), ligando o Mar do Caribe e o Pacífico, com a participação da Rússia, são dois ambiciosos projetos em estudo pela China e países da região, que custariam dezenas de bilhões de dólares, financiados por bancos chineses.

A frase inicial de Xi Jinping não é nova. Tem 66 anos. Surgiu na Carta das Nações Unidas, lançada em 1945, com os propósitos, entre outros, de “manter a paz e a segurança internacionais” e “desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos”. Aí está a base do Direito Internacional contemporâneo. A segunda frase – “o grande, forte e rico não deve intimidar o pequeno, fraco e pobre” – exemplifica como viabilizar e promover a primeira. Mas “intimidar” é um modo leve e diplomático de descrever as relações não raro impositivas e injustas entre países desiguais.

Xi Jinping, na verdade, foi modesto e cauteloso. Apenas lembrou o primeiro dos princípios que norteiam as ações da Organização das Nações Unidas (ONU), fundada em 1945, após a derrota na II Guerra Mundial dos países do Eixo – Alemanha, Itália, Japão e países parceiros –, pelos Aliados – Estados Unidos, França, Reino Unido, União Soviética e outros países, inclusive o Brasil. O maior conflito bélico de todos os tempos, provocado por forças políticas nacionalistas de extrema direita, nos leva a refletir sobre os movimentos equivalentes que hoje ameaçam o mundo. A situação é cada vez mais grave. Se tivermos uma guerra mundial neste século, com todos as armas inventadas nos últimos 70 anos, para uso em solo, no ar, nos oceanos e no espaço, teremos destruições em nosso planeta como jamais se viu antes.

Nos anos 30 do século passado, Alemanha, Itália e Japão se julgavam superiores aos demais países, seja na Europa, na África, na Ásia e nas Américas, praticamente no mundo inteiro.

O Estado Nazista, estabelecido na Alemanha com a ascensão ao poder de Adolfo Hitler, em 30 de janeiro de 1933, exaltava o povo alemão como raça ariana, superior a todos os outros povos, a começar pelos eslavos, judeus e ciganos, eliminados em mais de 40 milhões.

O fascismo de Benito Mussolini também pregava a purificação da “raça italiana”, sobretudo frente aos povos dos países ocupados na Europa e África – Albânia, partes da Grécia, Croácia, Eslovênia, parte do Egito e Etiópia, onde também cometeu crimes hediondos. Ainda assim, os nazistas desprezavam e ridicularizavam os italianos, em quem julgavam não poder confiar.

O Império do Japão menosprezava e exterminava como inferiores os povos de Burma, Camboja, China, Coreia, Indonésia, Filipinas, Malásia, Vietnã e de muitos outros países asiáticos dominados e massacrados pelo exército nipônico. Foram, ao todo, 53 milhões de mortos.

A história da luta pela igualdade das nações é um mar de sangue que atravessa milênios.

O primeiro princípio da Carta das Nações Unidas diz simplesmente: “A Organização se baseia no principio da igualdade soberana de todos seus membros.” Afirmar que todos os países são igualmente membros da comunidade internacional significa reconhecer que entre todos eles vigora o princípio da igualdade soberana. Todos são igualmente soberanos. Todos situam-se no mesmo nível. Nenhum deles está abaixo ou acima de qualquer outro.

Na teoria, não há país ou povo que seja mais ou menos soberano, como não há mulher mais ou menos grávida. Ou é soberano ou não se soberano. Na prática, porém, a questão é mais complicada e relativa. Nem todos os países, por mais que o queiram, podem exercer plenamente seus direitos soberanos. Nem todos podem decidir seu destino, em tudo aquilo que considerem fundamental a sua existência e seu desenvolvimento. O grau de soberania de um país é diretamente proporcional à sua capacidade de definir e aplicar soluções essenciais a seus problemas de hoje e de amanhã, segundo seus próprios interesses. Essa capacidade depende do grau e da vontade das forças econômicas e políticas que lideram a vida pública de um país. Suas elites podem preferir submeter-se aos interesses de uma ou mais potências mais ricas e dominantes na arena internacional.

Não se trata de pregar e buscar a soberania absoluta, aberração irrealizável em nosso tempo, por mais que alguns países poderosos ainda a ambicionem na prática, com base em seu incomparável poderio militar e financeiro. Trata-se, isto sim, de almejar o direito inalienável de valer-se de seus direitos soberanos e autodeterminar-se, segundo a vontade da maioria do povo, do modo mais democrático possível, com total liberdade de pensamento e expressão, sem a pressão ou a ingerência externa de forças militares, econômicas, financeiras ou de qualquer outra espécie.

Os demais princípios da Carta também reforçam o princípio da igualdade soberana. São eles: “Todos os membros se obrigam a cumprir de boa fé os compromissos da Carta”; “Todos deverão resolver suas controvérsias internacionais por meios pacíficos, de modo que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais”; “Todos deverão abster-se em suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao emprego da força contra outros Estados”; “Todos deverão dar assistência às Nações Unidas em qualquer medida que a Organização (ONU) tomar em conformidade com os preceitos da Carta, abstendo-se de prestar auxílio a qualquer Estado contra o qual as Nações Unidas agirem de modo preventivo ou coercitivo”; Cabe às Nações Unidas fazer com que os Estados não-membros da Organização ajam de acordo com esses princípios em tudo quanto for necessário à manutenção da paz e da segurança internacionais; “Nenhum preceito da Carta autoriza as Nações Unidas a intervir em assuntos que são essencialmente da alçada nacional de cada país.” Sendo todos os países igualmente soberanos, a nenhum deles é dado o direito de intromissão na vida interna ou externa dos outros. Do mesmo modo, se todos são igualmente soberanos, nada justifica que os maiores, mais fortes e mais ricos possam intimidar, subordinar ou explorar os menores, fracos e pobres, não importa a forma empregada nessas ações.

O princípio da igualdade soberana e todos os outros princípios aqui referidos foram reiterados e detalhados pela Declaração de Princípios do Direito Internacional relativos às Relações de Amizade e de Cooperação entre os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas (4), aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 24 de outubro de 1970, bem como pela Declaração de Princípios incluída na Ata Final da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa, assinada em Helsinki, Finlândia, no dia 1º de agosto de 1975 (5).

A Declaração de 1970 desenvolveu o princípio da igualdade dos países, afirmando que (I) todos os Estados são juridicamente iguais (não importa a dimensão geográfica, o Produto Interno Bruto – PIB, o poderio militar, o estágio do avanço científico, tecnológico e cultural de cada um) e (II) todos os Estados têm iguais direitos e iguais obrigações e são membros iguais da comunidade internacional, apesar das diferenças econômicas, sociais, políticas ou de qualquer outra ordem.

Reza ainda a Declaração: “Em virtude dos princípios da igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos consagrados na Carta (das Nações Unidas), todos os povos têm o direito de determinar livremente, sem interferência externa, seu status político e de perseguir seu desenvolvimento econômico, social e cultural, e cada Estado tem o dever de respeitar esse direito, em conformidade com os dispositivos da Carta.”

A Ata Final da Conferência de Helsinque, de 1975, introduziu mais detalhes: “Os Estados participantes respeitarão a igualdade soberana e a individualidade de cada um, bem como todos os direitos inerentes a sua soberania e nela integrados, incluindo, nomeadamente, o direito de cada Estado à igualdade jurídica, à integridade territorial e liberdade e independência política. Eles também respeitarão o direito de todos de escolher e desenvolver livremente seus sistemas políticos, sociais, econômicos e culturais, e seu direito de determinar as suas leis e regulamentos.”

Assim, tanto a Declaração de 1970 quanto a Ata de 1975, apoiadas pela esmagadora dos países de todo o mundo, deixam claro o que deve se entender por autodeterminação dos povos – o direito de todos de escolher e desenvolver livremente seus sistemas políticos, sociais, econômicos e culturais, e seu direito de determinar as suas leis e regulamentos.

Não é nada fácil manter e aplicar os princípios da igualdade soberana e da autodeterminação das nações em nossa época, dominada por gigantestas corporações financeiras, quando a distância entre os países mais ricos e desenvolvidos em relação aos demais atingiu níveis sem precedentes na história. E não é à toa que o renomado economista americano Joseph Stiglitz (1943-), Prêmio Nobel de 2001, descreve, em O Preço da Desigualdade, a relação entre política e economia como “o círculo vicioso no qual mais desigualdade econômica gera desigualdade política, principalmente no sistema político dos Estados Unidos, que confere um poder desenfreado ao dinheiro. A desigualdade política, por sua vez, aumenta a desigualdade econômica.” (6) Que, por sua vez, – cabe acrescentar – aumenta a desigualdade jurídica, baseada em novas teorias e práticas.

A torrente de desigualdades está ligada à “crescente e impressionante destruição causada pelas falhas de governança nas últimas décadas”, nos termos de John W. Cioffi, professor de Ciência Política da Universidade da Califórnia, Riverside, EUA. Suas pesquisas indicam: “Nem nos EUA, nem na Alemanha, as reformas da governança corporativa ostensivamente pró-acionista colocaram controles adequados à falta de gerenciamento, à incompetência, à desonestidade e/ou a oportunismo. As falhas de governança contribuíram para destruir enormes quantidades de valores dos acionistas, infligiram danos imensos e duradouros à 'economia real' e obrigaram o setor público a repassar ao setor financeiro trilhões de dólares para evitar o catastrófico colapso econômico nacional e global.” Cioffi recorda ainda: “O sistema financeiro norte-americano orientado pelo mercado e o regime de governança corporativa centrado nominalmente nos acionistas se autodestruíram duas vezes em uma década, mas as respostas políticas dos governos (George W.) Bush (2001-2009) e (Barack) Obama (2009-2017) foram destinadas, na melhor das hipóteses, a enfrentar suas falhas institucionais legais e institucionais.” Ciofi não é otimista. A seu ver, “a gravidade da crise enfatiza a necessidade de reformas fundamentais no monitoramento e checagem dos abusos do poder gerencial”, mas “a análise dos regimes de governança corporativa (feita em seu livro) sugere que a política doméstica provavelmente frustrará tais reformas”. (7)

A construção da igualdade é quase uma utopia. Mas uma utopia viável, porque necessária.

* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.

Referências

1) http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/222289. Artigo de Rui Barbosa, O Partido Republicanos Conservador. Representando o Brasil na 2ª Conferência de Haia, Holanda, em 1907, perante 175 participantes de 44 países, Rui se opôs às propostas alemã e inglesa de criação de um Tribunal de Presas e de um Tribunal de Arbitragem, com hegemonia das grandes potências. Sobre o Tribunal de Presas, argumentou: "Não olvidemos que segundo esse regime, o fraco terá de submeter-se à justiça do forte. Como regra geral, é o mais poderoso que tem menos razão de respeitar a lei. Por que, então, devemos reservar para este o privilégio da autoridade judiciária?" Rui consagrou-se no evento defendendo a igualdade soberana de todos os países em qualquer tribunal. Ver artigo de Christiane Laidler de Souza, Nossa águia em Haia, Revista de História da Biblioteca Nacional, 19/09/2007. A autora é pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa.

2) http://www.conversaafiada.com.br/economia/ferrovia-transoceanica-da-outro-passo.

3) http://thoth3126.com.br/canal-na-nicaragua-russia-e-china-desafia-os-eua/.

4) Resolução 2.625 (XXV), de 24 de outubro de 1970, da Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração sobre os Princípios de Direito Internacional Referentes às Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados em Conformidade com a Carta das Nações Unidas (Declaration on Principles of International Law Concerning Friendly Relations and Cooperation Among States in Accordance with the Charter of the United Nations).

5) http://www.universitario.com.br/noticias/n.php?i=11371.

6) Stiglitz, Joseph E., O Grande Abismo – Socieddades desiguais e o que podemos fazer sobre isso, Rio de Janeiro: Alta Books, 2016, p. xvi.

7) Cioffi, John W., Public Law and Private Power – Corporate Governance Reform in the Age of Finance Capitalism, USA, New York: Cornell University Press, 2010, p. 3-5.
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