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O Relógio do Apocalipse e as Atividades Espaciais
José Monserrat Filho*
"O mundo não está suficientemente preparado para um ambiente de risco cada vez mais complexo." Relatório de 2015 sobre “Riscos Globais”, Fórum Econômico Mundial, Davos, Suiça1
O que as atividades espaciais, hoje indispensáveis à vida no planeta, podem fazer para deter e atrasar o Relógio do Apocalipse (Doomsday Clock)? Que relações se podem estabelecer entre a exploração e o uso do espaço exterior e as advertências do relógio?
Em 19 de janeiro de 2015, esse indicador sui generis passou a marcar 23:57h, três minutos para a meia-noite – a hora da catástrofe global capaz de extinguir a espécie humana que habita a Terra há muitos milhares de anos. A decisão de adiantar o relógio em dois minutos foi tomada após consultas a especialistas, inclusive 17 laureados com o Prêmio Nobel, entre os quais três famosos físicos, o britânico Stephen Hawking, o japonês pioneiro no estudo dos neutrinos Masatoshi Koshiba e o norte-americano Leon Lederman.
A análise do Boletim dos Cientistas Atômicos2, através de sua Diretoria de Ciência e Segurança, dirigida “aos líderes e cidadãos do mundo”, afirma, em síntese:
"Em 2015, a mudança climática não checada, a modernização de armas nucleares globais e os exagerados arsenais de armas nucleares representam ameaças extraordinárias e inegáveis à continuidade da existência da humanidade, e os líderes mundiais falharam ao não agir com a velocidade ou na escala necessárias para proteger os cidadãos da potencial catástrofe. Essas falhas de liderança política põem em perigo cada pessoa na Terra."
O Relógio do Apocalipse, criado em 1947 para alertar contra o perigo das armas nucleares, foi iniciativa da citada Diretoria do Boletim dos Cientistas Atômicos, revista norte-americana fundada em 1945 por cientistas, engenheiros e técnicos da Universidade de Chicago, ex-participantes do projeto Manhattan, que deu ao mundo a primeira bomba atômica – “essa relíquia histórica” que confirmou o pré-aviso de seus criadores ao ser lançada em agosto do mesmo ano (1945) sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão, matando mais de 100 mil pessoas já no primeiro dia dos dois bombardeios e mais outro tanto nos meses que se seguiram.
Em 1947, vale notar, começava a Guerra Fria entre EUA e ex-União Soviética (URSS).
Nestes 68 anos, o Relógio do Apocalipse foi reajustado apenas 22 vezes.
Seu pior momento ocorreu em 1953, provocado pelos testes dos EUA e URSS com armas de hidrogênio, quando marcou 23,58h, ou seja, dois minutos para a meia-noite,
E o melhor momento deu-se em 1991, com a assinatura entre EUA e URSS, em 31 de julho, do Tratado de Redução de Armas Estratégicas (START I), que restringia o desenvolvimento de arsenais nucleares, quando marcou 23,43h, isto é, 17 minutos para a meia-noite.
De 1953 a 1960, o quadro melhorou, graças ao aumento de cooperação científica entre as duas potências, ao entendimento público dos perigos das armas nucleares e às ações políticas destinadas a evitar a "retaliação maciça", com EUA e URSS evitando o confronto direto em conflitos regionais, como no caso da Crise de Suez em 1956, e acertando não levar para o espaço exterior sua rivalidade na Terra3. E mais: o Ano Geofísico Internacional (01/07/1957-31/12/1958) reuniu cerca de 60 mil pesquisadores de 66 países, inclusive EUA e URSS e seus aliados, para conhecer melhor e mais profundamente os fenômenos do planeta. E surgiram as Conferências Pugwash sobre ciência e questões estratégicas mundiais, permitindo a interação entre cientistas norte-americanos e soviéticos. Tudo isso fez o relógio recuar e marcar sete para a meia-noite.
Em Janeiro de 2007, porém, ele foi adiantado em cinco minutos, passando a indicar cinco para a meia-noite, em vista de duas calamidades em potencial: 1) as ameaças de 27 mil armas nucleares, duas mil delas prontas para serem lançadas em minutos; e 2) a destruição do habitat dos seres humanos causada pela mudança climática.
O relógio fatídico tornou-se referência universal reconhecida de possíveis catástrofes globais decorrentes do uso de armas nucleares, das mudanças climáticas e das novas tecnologias baseadas nas ciências da vida.
Agora em 19 de janeiro, adiantado em dois minutos, ele passou a marcar três minutos para a meia-noite. Em vista de “falhas governamentais fantásticas”, que “puseram em perigo a civilização em escala global”, os diretores de Ciência e Segurança do Boletim dos Cientistas Atômicos decidiram instar os cidadãos do mundo a exigir de seus líderes, entre outras coisas, que:
1) “Reduzam drasticamente os gastos propostos para os programas de modernização das armas nucleares. EUA e Rússia têm lançado planos para reconstruir, no essencial, todas as suas tríades nucleares [bombardeiros, mísseis balísticos lançados de solo e submarinos lançadores de mísseis balísticos] nas próximas décadas, e outros países dotados de armas nucleares seguem seu exemplo. O custo projetado das "melhorias" dos arsenais nucleares é indefensável e põe em cheque o processo de desarmamento global.”
2) “Retomem de forma enérgica o processo de desarmamento, focado em resultados. EUA e Rússia, em particular, devem iniciar negociações para diminuir seus arsenais nucleares estratégicos e táticos. O mundo pode ser mais seguro com arsenais nucleares bem menores que os existentes hoje, se os líderes políticos estiverem de fato interessados em proteger de danos os seus cidadãos.”
3) “Criem instituições especialmente designadas para analisar e combater os usos maléficos e potencialmente catastróficos das novas tecnologias. O avanço científico pode prover a sociedade de grandes benefícios, mas o uso indevido em potencial de novas e poderosas tecnologias é real, a menos que lideranças governamentais, científicas e empresariais tomem medidas adequadas para analisar e combater possíveis efeitos devastadores dessas tecnologias ainda no início de seu desenvolvimento.”4
Todas estas exigências são também aplicáveis ao espaço exterior.
É preciso discutir a proibição da passagem pelo espaço de mísseis balísticos com armas nucleares na ogiva. O Artigo 4º do Tratado do Espaço de 1967 veda a colocação de armas de destruição em massa em órbitas da Terra e nos corpos celestes, a começar pela Lua. E determina também “a não colocação de tais armas, de nenhuma maneira, no espaço cósmico”. Passar pelo espaço, sem entrar em órbita, não parece significar colocar tais armas em órbitas da Terra ou no espaço cósmico. Por isso, o trânsito delas pelo espaço não está proibido. Logo, está permitido. Por que não mudar essa situação? O nosso planeta e o próprio espaço certamente ficarão bem mais seguros, se os arsenais nucleares não puderem cruzar o espaço para atingir seus alvos na Terra.
Quanto ao ponto 2, é hora de retomar decididamente o processo de desarmamento nuclear na Terra e também o desarmamento no espaço, impedindo a instalação nele de qualquer tipo de armamento. Isso poderá evitar a transformação do espaço em novo teatro de guerra, pois isso é capaz de provocar um colapso nos sistemas de satélites ativos e nos serviços de primeira necessidade que prestam aos povos, países e organizações internacionais públicas e privadas.
É importante igualmente, como frisa o ponto 3, criar centros de estudos para examinar e condenar, quando for o caso, o emprego potencialmente catastrófico das novas tecnologias. O avanço científico e tecnológico traz benefícios sem conta, mas o mau uso dessas conquistas é, mais do que nunca, uma possibilidade real. Urgem medidas consistentes para eliminar essa desastrosa possibilidade, também no espaço.
Tais ações estariam em perfeita sintonia com o esforço de criar um conjunto de “Diretrizes Relativas à Sustentabilidade a Longo Prazo das Atividades Espaciais”, em elaboração pelo Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (UNCOPUOS, na sigla em inglês), através de seu Subcomitê Técnico-Científico. Trata-se de um sinal dos tempos atuais com guerras e conflitos em alta, capazes de afetar o espaço. Um Grupo de Trabalho especialmente designado pelo Subcomitê para estudar o assunto elaborou um documento5 que atualiza as propostas de diretrizes já apresentadas. E que será apreciado pelo próprio Subcomitê Técnico-Científico, em sua reunião de 2 a 13 de fevereiro de 2015, em Viena, Áustria.
O documento afirma, em seu ponto 18: “Na conquista do objetivo de assegurar a sustentabilidade a longo prazo das atividades espaciais, os Estados e as organizações internacionais devem se abster de realizar, deliberadamente ou não, atos e práticas, bem como de utilizar meios e métodos capazes de afetar ou danificar, de alguma forma, violando normas e princípios do direito internacional, os bens que se encontram no espaço, e de criar situações que tornem impraticável, por razões de segurança nacional, a aplicação plena e efetiva das diretrizes”.
Eis um bom exemplo de diretriz bem redigida: ela formula uma recomendação clara e objetiva, além de justa e fundamental. Trata-se, nada menos, de prevenir qualquer tipo de conflitos no espaço, intencionais ou não. Impossível assegurar a sustentabilidade das atividades espaciais sem essa regra básica, que, por isso mesmo, deveria ser obrigatória.
Acontece que as diretrizes, de acordo com seu ponto 13, “são de caráter voluntário e não vinculantes legalmente sob o direito internacional”, uma insuficiência difícil de subestimar.
Tanto que o seu ponto 14 enfatiza: “A aplicação das diretrizes é considerada medida prudente e necessária para preservar o meio ambiente espacial para as gerações futuras. Os Estados, as organizações intergovernamentais internacionais, as organizações não-governamentais nacionais e internacionais e as entidades do setor privado devem adotá-las de modo voluntário, mediante seus próprios mecanismos de execução, para garantir a aplicação das diretrizes na maior extensão possível, dentro do viável e do factível”.
Ora, se a aplicação das diretrizes é considerada medida prudente e necessária para algo tão relevante quanto preservar o ambiente espacial para as gerações futuras, por que permitir que os Estados e tão amplo e variado leque de organizações internacionais e nacionais, públicas, sociais e privadas, apliquem as diretrizes segundo seus próprios mecanismos e critérios, e de maneira tão imprecisa e subjetiva quanto “na maior extensão possível” e “dentro do viável e do factível”? Assim, quem senão a própria organização/entidade interessada quantificará, com base em seus interesses específicos, a “maior extensão possível”, e definirá o “viável” e o “factível”?
Será prudente deixar a preservação do espaço para as futuras gerações na dependência de decisões unilaterais e subjetivas?
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). Este artigo reflete apenas a opinião do autor.
Referências
1) Ver http://www.weforum.org/reports/global-risks-report-2015.
2) Ver http://thebulletin.org/.
3) Resolução 1472 (XIV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 12/12/1959.
4) Ver http://thebulletin.org/.
5) Ver http://www.unoosa.org/oosa/en/COPUOS/stsc/ac105-c1-ltd.html. Doc. A/AC.105/ C.1/L.340, de 22/10/2014.
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