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Democratização e Militarização do
Espaço: Pode?
José
Monserrat Filho *
“Se não mudarmos de direção, é provável que acabaremos chegando exatamente ao mesmo lugar de onde partimos.” Provérbio chinês
Até
quando a democratização do espaço poderá conviver com a contínua militarização
e a corrida armamentista que visa instalar armas em órbitas da Terra,
transformando-as em novo “teatro de guerra”, como já o são o solo terrestre, o
mar e o espaço aéreo?
E qual
é o papel do Direito Espacial no caso?
Essas
questões me surgem após ler o artigo “A Democratização do Espaço – Novos atores
precisam de Novas Regras”, de Dave Baiocchi e William Welser IV, publicado na
mais recente edição da revista americana Foreign Affairs1.
A
democratização do espaço, segundo o artigo, é produto da grande mudança havida
em mais de meio século da Era Espacial, inaugurada pelo Sputnik-1, da ex-União
Soviética, em 4 de outubro de 1957. As atividade espaciais, de início
exclusivas de alguns estados – a começar pela União Soviética e Estados Unidos
–, passaram a ser acessíveis a vários novos atores, além dos estados:
organizações internacionais, empresas privadas, centros de pesquisa,
universidades e até pessoas físicas.
Abriu-se,
de fato, um leque de participantes, mas o papel principal continua
pertencendo aos estados: 53 países deles são responsáveis hoje por mais dos
1.300 satélites ativos. Esses 53, no entanto, são poucos se comparados com os
192 países-membros das Nações Unidas, que não incluem todos os países do mundo
– seguramente, mais de 200. Os benefícios do espaço tornaram-se indispensáveis
a todos os países e povos, mas apenas um quarto deles têm acesso às
atividades ebnefícios espaciais. Grande
parte da humanidade segue fora da Era Espacial. Mesmo assim, sem dúvida, há novos
atores – um avanço real em relação ao que tínhamos há apenas algumas décadas.
O
progresso tecnológico também é apontado como fator decisivo da mudança.
“Hoje, a construção de um satélite básico não é mais considerada como “ciência
de foguete” (rocket science). Graças à disponibilidade de pequenos
computadores de eficiência energética, de processos inovativos de produção e de
novos modelos de negócios para o lançamento de foguetes, lançar uma missão
espacial tornou-se mais fácil do que nunca”, diz o artigo.
Ele
cita, como prova, o smartphone “produto de mais de três décadas de
avanços em design e fabricação de técnicas de circuitos”. E acrescenta: “Os
processadores de hoje contêm mil vezes mais transistores que os de 20 anos
atrás. O iPhone 6 tem tanto poder computacional quanto um supercomputador de
1990. Menor também significa maior eficiência energética: um telefone celular
típico gasta apenas 25 centavos de dólar por ano de eletricidade, enquanto um
computador de mesa (desktop) gasta 36 dólares.” E conclui: “Um hardware
pequeno, poderoso e com eficiência energética é perfeitamente adequado aos
satélites, que dispõem de volume e quantidade finita de energia elétrica (vinda
dos painéis solares). E graças às novas ferramentas de desenvolvimento de
software e ao hardware customizável, qualquer pessoa, mesmo com modesta
capacidade de programação, pode montar um computador perfeitamente capaz de
caber num satélite.”
O
artigo indica ainda que as mudanças no modo de fabricar também barateiam as
missões espaciais e que as técnicas tradicionais de fabricação em geral não se
prestam a essa indústria. Usando um
equipamento de fabricação como o 3-D de impressão a laser e sintetização, por
exemplo – que custa só 35 dólares –, constroem-se rapidamente peças que no
passado exigiam moldes personalizados, robôs especializados e correias de
transmissão; os aditivos de fabricação reduzem os custos – por um fator de dez,
pelo menos – da produção de inúmeras peças. Além disso, dispensam especialistas
em máquinas que produzem ferramentas.
Está
ficando igualmente mais barato lançar satélites ao espaço.
Algumas empresas de países desenvolvidos estão empenhadas em baixar os custos
dos lançamentos, modularizando seus veículos, modernizando seus fluxos de
trabalho de projeto e fabricação, e integrando verticalmente seus processos de
fabricação. Novas companhias buscam ocupar o nicho dos pequenos satélites com
serviços de lançamento que custam entre um milhão e 10 milhões de dólares. A
S-3 (Swiss Space Systems), da Suíça, anuncia para 2018 o primeiro voo comercial
de um sistema de lançamento de pequenos satélites de até 250kg, que cobrará a
módica soma de US$ 10 milhões. Esse sistema utiliza um avião até a altura de 10
km, de onde parte um shuttle reutilizável (chamado SOAR), que leva a
bordo e lança a uma altura de 100 km um pequeno veículo incumbido de colocar a
carga útil na órbita programada.
Todos
estes progressos em computação, produção e lançamento
tornaram e seguirão tornando o espaço mais acessível que nunca, incentivando os
empresários a apostar no negócio.
Mas,
alerta o artigo, as facilidades de ingresso no espaço podem igualmente gerar
ações perigosas e ilegais. Organizações não-governamentais têm capacidade de
efetuar operações espaciais para minar planos governamentais. Um ativista rico,
interessado em promover a transparência, pode lançar uma constelação de
satélites para monitorar e bisbilhotar a movimentação de tropas no mundo
inteiro. O crime organizado pode usar satélites para acompanhar em tempo real
operações policiais ou atividades de grupos rivais.
Todo
este contexto levanta novos desafios para governos e legisladores. Segundo o
artigo, a maior parte do Tratado do Espaço, de 1967, e dos quatro outros
tratados espaciais em vigor, aplica-se hoje, de fato, a apenas “um punhado de
estados” e estabelece quatro princípios básicos: 1) manter o espaço aberto à
exploração e uso por todos os países; 2) responsabilizar cada país por suas
atividades espaciais nacionais, realizadas tanto por entidades públicas, como
privadas; 3) responsabilizar os países pelos danos causados por seus objetos
espaciais; e 4) os países devem cooperar entre si e prestar assistência mútua.
Na
verdade, os cinco tratados aplicam-se a todos os países que os ratificaram, que
não são poucos. O Tratado do Espaço de
1967, definido como a lei maior do espaço, tem, por exemplo, 103 ratificações,
e, ademais, é considerado “costume internacional”, pois, ao longo de seus quase
70 anos de vigência, nunca foi questionado por nenhum país, sendo, portanto,
válido para todos os países do mundo, inclusive para aqueles que não o
assinaram nem o ratificaram.
Entre
os princípios básicos, estranhamente, não é citado o mais importante,
conhecido como “cláusula do bem comum”, expresso no Artigo 1º, § 1º, do Tratado
do Espaço: “A exploração e o uso do
espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira
o bem e o interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu
desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a
humanidade.” A versão em inglês do Tratado refere-se à
“Province of all mankind”, expressão amplamente utilizada, que significa,
“Interesse, conhecimento e responsabilidade de toda a humanidade.”
O
artigo frisa que, desde os anos 60, o universo das atividades espaciais mudou
muito: “Hoje, 12 países têm um total de 26 centros de lançamentos e o ritmo das
mudanças tecnológicas é vertiginoso.” E mais: “Assim como agora os governos
nacionais têm de lidar com o aparecimento dos drones em seus espaços aéreos, a
comunidade internacional, operando em altitude mais elevada, terá de se adaptar
à proliferação de missões espaciais.”
Novas
regras são portanto necessárias, não apenas devido ao advento de novos atores,
como o artigo sustenta já em seu título. Há muitas atividades espaciais novas
que precisam ser ordenadas.
O que
fazer, então? “O primeiro passo para o uso responsável de qualquer
recurso, é compreender e monitorar como esse recurso é usado”, nota o artigo e
acrescenta: “Para o espaço, isso significa saber onde tudo é situado, ou, como
é sabido na indústria, desenvolver 'o conhecimento da situação espacial' (space
situational awareness).” Esse conhecimento, claro, torna-se cada vez mais
importante com o aumento do número de atores e de objetos no espaço.
A Rede
de Vigilância Espacial dos EUA, parte do Comando Estratégico do país, rastreia
mais de 17 mil objetos no espaço [esse número provavelmente é maior], entre
satélites ativos, carcaças de velhos foguetes e pequenos detritos, observa o
artigo. Daí que hoje os EUA são os maiores guardiães do catálogo dos satélites
ativos e do lixo espacial com tamanho superior a 10 cm. Mas outros países e até
entidades privadas já começam a manter seus próprios registros.
Diante
dessa crescente diversidade, o artigo propõe algo mais que razoável: “É tempo
de centralizar toda essa informação num único local, o que vai requerer um
acordo entre os países sobre novas políticas e o uso de novas tecnologias
capazes de facilitar a partilha de dados.” A ideia não poderia ser melhor:
criar um centro global de monitoramento, vigilância e alerta de satélites e
detritos espaciais, equipado com as mais avançadas tecnologias, para servir a
todos os países, igualmente e sem qualquer traço de discriminação ou
preferência. Seria um exemplo de cooperação internacional sem precedentes, em
área indispensável à segurança de toda a comunidade de nações. E pouparia
recursos dos participantes, que poderiam ser empregados em seus programas
nacionais.
O
segundo desafio espacial, após a proliferação de atores,
segundo o artigo, seriam as “tecnologias duais” (dual-use technologies),
que servem a fins tanto pacíficos como militares: “Imagens de satélite são
usadas para monitorar colheitas tão facilmente quanto para espionar bases de
submarinos.” O artigo adverte, a propósito, que “quanto mais atores privados
entrarem no negócio espacial, mais importante será distinguir entre propósitos
expressos e não expressos”(intended and unintended purposes). Esses atores
podem declarar uma coisa e fazer outra. Outro exemplo é citado: “Uma frota de
satélites equipados com pequenas câmaras pode ser lançada para coletar dados
meteorológicos mais precisos, mas, com a frota já em órbita, seus operadores
podem descobrir que ela também é capaz de monitorar a polícia.”
Instalado
um bom e amplo sistema de conhecimento da situação espacial, caberia aos
operadores declarar publicamente seus reais objetivos. A Convenção de Registro
de Objetos Lançados ao Espaço, de 1976, reza em seu Artigo 4º que cada Estado
responsável pelo registro do objeto espacial lançado deve fornecer vários dados
sobre ele, inclusive sua “função geral”, ou seja, seus objetivos verdadeiros.
Verifica-se mais uma vez: o que se há de levar em conta não é propriamente o
aumento do número de atores, mas suas atividades efetivas.
O
terceiro e último desafio espacial, na visão do artigo, são os “atores
não estatais”, cujas atividades podem dificultar ainda mais o conhecimento
completo da situação espacial: “Tornar-se-á mais difícil tanto avaliar o
propósito da missão, quanto atribuir responsabilidade à parte devida em caso de
acidente que ponha em risco capacidades importantes como previsão do tempo, a
televisão por satélite e sistemas de navegação.” Ainda mais que, “até
recentemente, barreiras técnicas significavam que os governos não precisavam se
preocupar com as perspectivas de tais atividades.”
O
artigo conclui que (1) é necessário adicionar novas normas ao
Tratado do Espaço e (2) a falta de conhecimento da situação espacial deve ser
encarada como questão urgente. Conclusões corretas e oportunas. Uma das normas
a introduzir com urgência no Tratado do Espaço ou fixar num documento de igual
validade legal é vedar o espaço à instalação de armas de qualquer tipo e ao uso
da força militar. A militarização do espaço e a eliminação do lixo espacial
precisam ser reguladas na mesma proporção dos perigos que geram. Isso
concorreria para garantir uma sustentabilidade mais completa e permanente das
atividades espaciais – cada vez mais imprescindíveis à vida e ao
desenvolvimento de todos os países e de toda a humanidade.
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e
Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito
Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe
da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB).
Esse artigo expressa exclusivamente a opinião do autor.
Referência
(1) The
Democratization of Space – New Actors Need New Rules, by Dave Baiocchi,
Senior Engineer at the RAND Corporation and a Professor at the Pardee RAND
Graduate School, and William Welser IV, Director of the Engennering and Applied
Sciences Department at the RAND Corporation and a Professor at the same
mentioned School; Foreign Affairs, May/June 2015, pp. 98-104.
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