quarta-feira, 3 de agosto de 2016

"O espaço entre colisões e lixo", artigo de José Monserrat Filho

.
O espaço entre colisões e lixo 

José Monserrat Filho *

“O espaço, portanto, tornou-se mercadoria universal por excelência.” Milton Santos, Pensando o Espaço do Homem, Edusp, 2012 [1982], p. 30.1

É hora de criar diretrizes internacionais para regular o tráfego nas órbitas da Terra, diz o presidente da Associação da Indústria de satélites da Rússia, Tom Stroup, falando à Rádio Sputnik, de Moscou. O número de satélites ativos aumentou em 40% nos últimos cinco anos, lembra ele, com base em artigo do Washington Post. Hoje, há cerca de 1.400 deles em operação.

Mas o problema não são os satélites de hoje, são os de amanhã, alerta Stroup. Os chineses creem que até 2020 serão lançados mil novos satélites, dos quais eles esperam deter 10%. Recentemente, a empresa canadense MDA venceu a concorrência para produzir componentes de antenas de comunicação destinadas a 900 satélites de baixas órbitas a serem lançados em 2019, compondo uma constelação dedicada a prestar serviços de comunicação em banda larga (Internet) em todo o mundo. Stroup tem estimativas ainda maiores: “Há constelações em potencial com bem mais de 5.000 satélites adicionais já anunciados”. Isso inclui a torrente de pequenos satélites de vários tamanhos. Ou seja, deve chover satélites, como jamais se viu em 60 anos de Era Espacial.

Mais satélites em órbita significa mais perigo de colisões no espaço – entre eles e com o lixo espacial já existente, produzindo mais lixo ainda nas principais órbitas da Terra. Aí se incluem objetos naturais que voam soltos no espaço e também podem causar choques danosos aos satélites.

Daí a proposta de Stroup de se criar um sistema global para regular a colocação e o uso de satélites em diferentes órbitas. Tal sistema, a seu ver, “reduziria dramaticamente os riscos físicos de acidentes no espaço, visando em especial a rápida expansão do mercado de comunicação”.

Mas quem criaria essa regulamentação? Seria um instrumento voluntário (soft law) ou obrigatório (hard law)? De um modo ou de outro, nenhum país em particular tem competência legal para criar uma regulamentação internacional. Toda legislação nacional só é válida na jurisdição nacional e não pode ser aplicada na jurisdição internacional. Estabelecer uma legislação internacional é direito exclusivo das organizações internacionais intergovernamentais. É prerrogativa conjunta dos Estados soberanos legalmente comprometidos com a matéria em questão. Quem tem legislado sobre as questões espaciais básicas é a Organização das Nações Unidas (ONU).

Não está na jurisdição dos Estados Unidos (EUA) a adoção de normas gerais sobre o espaço e as atividades espaciais, frisou o próprio Stroup. O cinco tratados em vigor sobre os temas espacias mais abrangentes – a começar pelo Tratado do Espaço de 1967, a lei maior do espaço – foram discutidos, elaborados e aprovados pelo Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço (UNCOPUOS) e depois pela Assembleia Geral da ONU. Os programas e projetos nacionais criados individualmente pelos países tem vigência em seus territórios e devem, obrigatoriamente, obedecer aos princípios e normas dos tratados internacionais por eles ratificados.

O Congresso Nacional dos EUA discute como dar ao país a jurisdição necessária para   habilitá-lo a regular a questão das colisões espaciais e para definir a entidade encarregada de criar a regulamentação pertinente. Se tal medida for admitida por deputados e senadores norte-americanos, eles estarão mudando importantes regras jurídicas internacionais hoje vigentes. Seria como reiterar a lógica inaceitável da lei que outorga às empresas norte-americanas o direito de propriedade sobre as riquezas minerais e outros recursos naturais por elas extraídos de asteroides e demais corpos celestes (HR 2262)2, sancionada pelo Presidente Barack Obama em 25 de novembro de 2015 – uma lei nacional para regular um assunto internacional. Essa aberração jurídica tende a se confirmar agora na medida em que se cogita designar a Administração Federal da Aviação dos EUA (Federal Aviation Administraion – FAA) para elaborar o novo instrumento e zelar por sua aplicação.

Ocorre que as regras de trânsito espacial, frisa Stroup, precisam ser criadas sobretudo para reduzir a ameaça de prejudicar o negócio dos satélites, cujo número é cada vez maior, em vista do avanço dinâmico dos programas de satélites da Rússia, China, Índia e inúmeros outros países.

Não queremos que se crie um regime obrigatório só para as empresas americanas”, acrescenta Stroup, pois “os custos da regulamentação e de seus obstáculos podem ser muito altos”. Os EUA “podem decidir ir adiante e operá-la independente dos outros países". Isso pode ser lesivo aos legítimos interesses de concorrência dos demais países, que também lutam por novos mercados. "Seja qual for a regulamentação a ser adotada, ela deve ser endossada por outras nações do mundo", conclui ele.

Há ainda outra questão, não menos relevante: o que deve vir primeiro, o marco legal para o tráfego dos satélites ou as regras para reduzir o monturo crescente de lixo espacial? Stroup não fala dessa escolha de Sofia. As duas iniciativas, ligadas umbilicalmente, são urgentes. E caras, caríssimas. E decisivas para garantir a sustentabilidade a longo prazo de atividades espaciais hoje indispensáveis a todos os habitantes do nosso planeta. Quem pagará por essa segurança global?

* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.

Referências

1) Milton Almeida dos Santos (1926-2001), geógrafo brasileiro, graduado em direito, ativo participante da renovação da geografia no Brasil nos anos 70, com importantes pesquisas sobre urbanização nos países em desenvolvimento. Autor de um sem número de livros, nos anos 90 projetou-se por seus trabalhos sobre globalização; em 1994 ganhou o Prêmio Vautrin Lud, considerado o Nobel da Geografia; em 2006 foi agraciado postumamente com o Prêmio Anísio Teixeira, da Capes, que homenageia personalidades brasileiras com aportes relevantes para o desenvolvimento da pesquisa e a formação de recursos humanos no país.
2) Ver https://www.congress.gov/bill/114th-congress/house-bill/2262/text.
.

Nenhum comentário: