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Espaço mais aberto para países pobres
José Monserrat Filho *
“... os Estados-Partes do Tratado deverão fundamentar-se sobre os princípios da cooperação e de assistência mútua e exercerão as suas atividades no espaço cósmico, inclusive na Lua e demais corpos celestes, levando devidamente em conta os interesses correspondentes dos demais Estados-Partes do Tratado.” Do Artigo IX do Tratado do Espaço, de 1967, a lei maior do espaço exterior
A China assinou acordo de cooperação com o Escritório das Nações Unidas para Assuntos do Espaço Exterior (United Nations Office for Outer Space Affairs – UNOOSA), abrindo à colaboração mundial sua Estação Espacial Tiangong 3 (“Palácio Celestial”, in chinês), que deverá estar operacional em 2022, munida de um módulo central e dois módulos experimentais.
Pelo acordo de 16 de julho de 2016, a futura estação espacial será aberta a experiências científicas e a astronautas, cientistas e engenheiros envolvidos com cargas úteis (satélites, sondas) dos países membros das Nações Unidas, sem restrições.
Tudo indica: é um programa novo e abrangente de cooperação espacial internacional. Destina-se, em especial, a proporcionar maior e melhor acesso ao espaço para os países em desenvolvimento – reconhecidamente, a parte majoritária mais necessitada do nosso planeta. Inclui a cooperação internacional em voos espaciais tripulados e outras atividades espaciais importantes.
Numa época de aguda e crescente concentração global de renda, alarmante desigualdade entre países, povos e pessoas, e a mais intensa privatização das atividades espaciais nos Estados Unidos (EUA) e Europa, o programa dá a nítida impressão de inaugurar um caminho bem distinto, de ambiciosa inclusão espacial e inusitado interesse público internacional.
A iniciativa foi anunciada por Aimin Niu, porta-voz da China Manned Space Agency (CMSA) – que parece adequado traduzir como Agência de Voos Espaciais Tripulados da China. "O acordo propiciará oportunidades excitantes à criação de capacidades espaciais ainda maiores nos países em desenvolvimento e ampliará a consciência dos benefícios humanos que a tecnologia espacial pode trazer à humanidade e assim promover a aplicação efetiva dos objetivos do desenvolvimento sustentável", acrescentou Aimin Niu, em entrevista à Astrowatch.net.
Ampliar a consciência dos benefícios humanos que a tecnologia espacial pode trazer à humanidade e promover o desenvolvimento sustentável – só pode significar a realização de grande esforço educacional e cultural, alinhado com a certeza de real acesso a tais benefícios e à meta do desenvolvimento sustentável, sonhada e apregoada por todos os povos e países.
Niu disse ainda que “a China está disposta a treinar astronautas de outros países. O apoio financeiro às suas missões de voo será negociado entre parceiros e compartilhado por eles”. Quer dizer: na preparação de astronautas, atividade sabidamente cara, o serviço em princípio será pago, mas, dependendo do país, certamente poderá haver ajuda financeira chinesa, como, aliás, tem acontecido em muitas outras áreas. Afinal, um dos principais propósitos do acordo é permitir o avanço espacial dos países mais carentes.
Tiangong 3 acolherá três astronautas em tempo integral e até seis em sistema de rodízio. E abrigará o futuro telescópio espacial chinês, Xuntian. Equipada com tecnologias de ponta e instalações multi-propósito de bordo, a estação será um laboratório para experimentos em microgravidade nos campos da física, biologia e ciências da vida, bem como para observação da Terra, revelou Niu. Tudo à disposição dos países membros das Nações Unidas.
O acordo se compromete a fortalecer o programa da UNOOSA, criado em 2010 e intitulado Human Space Technology Initiative (HSTI), que visa capacitar países no desenvolvimento de tecnologias espaciais para estimular o desenvolvimento humano. Esse programa está em perfeita sintonia com as prioridades temáticas da UNISPACE+50, encontro de alto nível sobre “O Espaço como Condutor do Desenvolvimento Sócio Econômico Sustentável”, que, em 2018, vai comemorar os 50 anos da 1ª Conferência das Nações Unidas sobre Exploração e Uso Pacífico do Espaço Exterior (UNISPACE I), realizada de 15 a 18 de outubro de 1968. São duas as prioridades temáticas: “A Construção de Competências para o Século XXI” e “Acessibilidade ao Espaço”.
Graças ao acordo, a China espera incrementar a cooperação multilateral no espaço, com ampla participação dos países membros das Nações Unidas e organizações internacionais, segundo o princípio do uso pacífico do espaço, igualdade e benefícios mútuos e desenvolvimento conjunto, afirmou Wu Ping, diretor adjunto da Agência de Voos Espaciais Tripulados (CMSA) da China.
A cooperação com desenvolvimento conjunto é uma das diretrizes estratégicas do Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE 2012–2021), elaborado pela Agência Espacial Brasileira (AEB). A diretriz reza: “Ampliar as parcerias com outros países, priorizando o desenvolvimento conjunto de projetos tecnológicos e industriais de interesse mútuo”. A ideia é colocar pesquisadores e engenheiros de dois ou mais países lado a lado, trabalhando juntos.
Resumindo, Wu Ping frisou: “A exploração do espaço é sonho e desejo comum da humanidade. Cremos que a implementação do acordo promoverá em definitivo a cooperação internacional na exploração do espaço, e criará oportunidades para os Estados Membros das Nações Unidas, em particular os países em desenvolvimento, de participarem e se beneficiarem do uso da estação espacial da China”.
Se este acordo se tornar realidade, estaremos diante de duas novidades, uma prática e outra jurídica. A novidade prática é que, pela primeira vez na Era Espacial, a estação espacial de um país se abrirá ao uso de todos os demais países membros das Nações Unidas. A novidade jurídica é que, também pela primeira vez, um país se compromete legalmente a cooperar numa área espacial de relevo com qualquer um dos países membros das Nações Unidas ou com todos eles, em particular com os países em desenvolvimento, bem como com organizações internacionais.
Não será um novo e mais amplo conceito de cooperação espacial internacional?
Difícil, nesta hora, deixar de lembrar a Estação Espacial Internacional (International Space Station – ISS), construída entre 1998 e 2010 sob a liderança dos Estados Unidos (EUA), que jamais convidou a China para integrá-la, nem quando mantinha com ela excelentes relações e negócios. A ISS só pode ser usada pelos países que ratificaram seu acordo de fundação: Canadá, EUA, Japão, Rússia, e – através da Agência Espacial Europeia (ESA) – Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Itália, Países Baixos, Noruega, Portugal, Reino Unido, Suécia e Suíça.
A Agência Espacial Brasileira chegou a firmar um acordo com a NASA, a agência espacial dos EUA, em 1997, durante a visita ao Brasil do então presidente americano Bill Clinton. Mas depois se viu que o custo de US$ 120 milhões para as seis peças da ISS encomendadas ao Brasil superava o orçamento disponível da AEB. O Brasil, então, mais interessado em investir em seus próprios projetos, afastou-se da ISS. Um desses projetos, aliás, é o da construção do foguete lançador VLS-1, que nunca foi aceito pelo Departamento de Estado dos EUA.
O acordo China-UNOOSA concretiza, talvez pela primeira vez, a “Declaração sobre a Cooperação Internacional na Exploração e Uso do Espaço Exterior em Benefício e no Interesse de todos os Estados, levando em Especial Consideração as Necessidades dos Países em Desenvolvimento”, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em sua Resolução 51/122, de 13 de dezembro de 1996. No ponto 3, a Declaração recomenda: “Todos os Estados, especialmente aqueles com importante capacidade espacial e com programas de exploração e uso do espaço exterior, devem contribuir para a promoção e o avanço da cooperação internacional em bases equitativas e mutuamente aceitáveis. Neste contexto, atenção especial deve ser prestada ao bem e ao interesse dos países em desenvolvimento...”
Provavelmente, jamais um acordo foi tão claro e específico em dar efetiva atenção ou levar verdadeiramente em conta os direitos e interesses dos países em desenvolvimento no campo das atividades espaciais. A Resolução 51/122 da Assembleia Geral das Nações Unidas, apenas recomendativa e voluntária, deu origem, enfim, a um grande acordo internacional obrigatório.
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação
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segunda-feira, 1 de agosto de 2016
"Espaço mais aberto para países pobres", artigo de José Monserrat Filho
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