domingo, 23 de outubro de 2016

"A política espacial e o Tratado do Espaço", artigo de José Monserrat Filho

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A política espacial e o Tratado do Espaço

José Monserrat Filho *

“É irresponsável enterrar a cabeça na areia, ignorando as diversas formas por meio das quais influenciamos, diariamente, a vida de povos distantes.” Martha Nussbaum, Sem Fins lucrativos – Por que a democracia precisa das humanidades, p. 80 (1)

A Política precede o Direito. As discussões, negociações e acordos políticos é que, na prática, engendram as leis, os códigos e os tratados, tanto no Direito Interno de cada país, quanto no Direito Internacional, do conjunto regional ou geral dos países. “Normalmente, a 'política espacial' descreve a estratégia de um país em relação a seu programa espacial civil e o uso militar e comercial do espaço exterior. Além disso, as políticas espaciais incluem a elaboração da política espacial por meio do processo legislativo, bem como a execução dessa política por órgãos civis e militares e agências regulatórias”, escreve o jurista italiano Fabio Tronchetti. (2)

No Brasil, a PNDAE – Política Nacional de Desenvolvimento das Atividades Espaciais (Decreto 1.332, de 08/12/1994) estabelece os objetivos e diretrizes para os programas e projetos espaciais do país e tem o Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE) como seu principal instrumento de planejamento e programação. A Agência Espacial Brasileira (AEB) é responsável pelas atualizações do PNAE, cuja mais recente edição refere-se ao período de 2012-2021. (3) Há ainda o Programa Estratégico de Sistemas Espaciais (PESE), do Ministério de Defesa. (4) O problema é que não temos assegurado a prioridade e os meios para bem executar tais programas.

Mas há que considerar também a política espacial acordada em conjunto por mais de um país, que propicia a criação de instrumentos internacionais, bi ou multilaterais, obrigatórios ou não, sobre questões relativas ao espaço e às atividades espaciais. Tais questões são, em geral, de alcance global, isto é, de interesse objetivo de todos os países, de toda a humanidade. Elas precisam ser negociadas, dada a diversidade de interesses e visões que envolvem sua solução.

O Tratado do Espaço, magnífica obra política e jurídica do período da I Guerra Fria, completa 60 anos em 2017. Seu longo nome completo, “Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, Inclusive a Lua e Demais Corpos Celestes” (5), já expressa de certo modo as decisões políticas básicas que nortearam sua elaboração:

1) Não levar ao espaço a rivalidade entre as grandes potências existente na Terra (Resolução 1472 (XIV) da Assembleia Geral da ONU de 12/12/959), pois isso impossibilitaria qualquer acordo.

2) O espaço cósmico, ou exterior, inclui a Lua e os outros corpos celestes, como Marte e demais planetas do sistema solar, além dos asteroides. Isso significa que o espaço e os corpos celestes foram vistos como partes de um todo inseparável e que o Tratado deveria valer para ambas as partes. Os países que redigiram o Tratado poderiam ter criado um Direito para o espaço e outro para os corpos celestes, proibindo a apropriação nacional e privada do espaço, mas permitindo-a nos corpos celestes – como na prática há quem pretenda hoje. Felizmente, as duas grandes potências em aberto confronto na época escolheram o caminho do entendimento, da segurança mútua e da sensatez, pelo menos na questão espacial – estratégica desde então.

3) Os Estados são os sujeitos únicos e exclusivos do Direito das atividades espaciais. O poder público – que representa ou deve representar toda a população de um país – é quem regula e governa as atividades espaciais, mesmo quando efetuadas por entidades privadas

4)  As atividades espaciais compreendem a exploração (pesquisar, descobrir e conhecer) e o uso do espaço e dos corpos celestes. Ou seja, há uma parte de ciência básica, fundamental, de busca do conhecimento, e outra de aplicação prática, utilitária. São ações criativas permanentes e imprescindíveis, que permitem, enriquecem e também complicam a história humana.

Os fundadores do Tratado foram politicamente sábios no seu preâmbulo. Eles se inspiraram “nas vastas perspectivas que a descoberta do espaço cósmico pelo homem oferece à humanidade”; reconheceram “o interesse que apresenta para toda a humanidade o programa da exploração e uso do espaço cósmico para fins pacíficos”; concordaram que “a exploração e o uso do espaço cósmico deveriam efetuar-se para o bem de todos os povos, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico”; manifestaram o desejo de “contribuir para o desenvolvimento de ampla cooperação internacional no que concerne aos aspectos científicos e jurídicos da exploração e uso do espaço cósmico para fins pacíficos”; julgaram que “esta cooperação contribuirá para desenvolver a compreensão mútua e para consolidar as relações de amizade entre os Estados e os povos”; recordaram a resolução de 1884 (XVIII), adotada por unanimidade pela Assembléia Geral da ONU em 17 de outubro de 1963, encarecendo os Estados de se absterem de colocar em órbita objetos portadores de armas nucleares ou de qualquer outro tipo de arma de destruição em massa e de instalar tais armas em corpos celestes; consideraram aplicável ao espaço exterior a resolução 110 (II) da Assembléia Geral da ONU, de 3 de novembro de 1947, que “condena a propaganda destinada a ou suscetível de provocar ou encorajar qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou qualquer ato de agressão”; e manifestaram a convicção de que o Tratado do Espaço “contribuirá para realizar os propósitos e princípios da Carta da ONU”.

Os autores do Tratado tiveram o cuidado político de fixar no Artigo 1º (§ 1) a “cláusula do bem comum”,  assim expressa: “A exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem e o interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade.” No § 2, eles adotaram o princípio da livre exploração e uso do espaço e dos corpos celestes por todos os Estados, sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e respeito ao direito internacional, e com liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes. E no § 3 resolveram que o espaço e os corpos celestes sejam mantidos sempre abertos às pesquisas científicas e que os Estados facilitem e encorajem a cooperação internacional nessas pesquisas.

Assim, a decisão política consagrada de comum acordo no Artigo 1º é que tudo o que se faz no espaço e nos corpos celestes, para ser legítimo e legal, precisa ser benéfico e atender ao interesse de todos os países, desenvolvidos e em desenvolvimento, ricos e pobres. Em suma, não pode beneficiar apenas os países adiantados. Isso implica uma cooperação entre países desiguais. Equânime, portanto. Essa diferença é essencial. Não há como subestimá-la ou ignorá-la. Ademais, se todos os países devem ser beneficiados, todos devem ter acesso ao espaço e aos corpos celestes, com o apoio para tal, se necessário. Isso também é essencial. E a concordância política de manter o espaço e os corpos celestes sempre abertos à pesquisa científica é perfeitamente coerente com os princípios do bem comum e do livre acesso ao espaço e aos corpos celestes, desde que, claro, o bem e o interesse de todos os países sejam efetivamente respeitados. Daí a obrigação, sobretudo dos países mais avançados, de facilitar e encorajar a cooperação internacional nas pesquisas científicas.

Tudo isso seria ilusório, se cada país pudesse se adonar unilateralmente de pontos, regiões ou recursos naturais do espaço e dos corpos celestes. O corolário político natural dessa construção lógica está fixado no Artigo 2º do Tratado do Espaço, que reza sem deixar lacunas: “O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio.” E não é válido alegar, como faz a lei americana de 25 de novembro de 2015 (4), que as empresas privadas do país não vão se apropriar de nenhum corpo celeste ou parte dele ao extraírem de lá minerais e outros recursos naturais. A mineração industrial em qualquer corpo celeste acarreta necessariamente a ocupação, mesmo que temporária, do corpo celeste, o que, como vimos, é vedado pelo Artigo 2º.

O Direito Internacional, com a Carta da ONU à frente, não se limita à Terra. Vale também no espaço e nas atividades espaciais. Essa diretriz política assumida pelos criadores do Tratado do Espaço, no Artigo 3º, buscava a vantagem de “manter a paz e a segurança internacional e de favorecer a cooperação e a compreensão internacionais” numa área estratégica. Assim, os princípios contidos no Artigo 3 da Carta da ONU, como os da solução de controvérsias somente por meios pacíficos e da prevenção da ameaça ou uso da força nas relações internacionais, tornaram-se aplicáveis no espaço. Mas também tornou-se aplicável no espaço o direito de legítima defesa individual ou coletiva em caso de agressão armada contra um Estado Membro da ONU, conforme o Artigo 51 da Carta. Ocorre que os princípios que vetam a guerra entraram em conflito com o direito de legítima defesa, que passou a ser a fórmula mais utilizada pelos países de legalizar, lícita ou ilicitamente, a guerra. A legítima defesa é alegada também para justificar a preparação da guerra no espaço, que caracteriza a presente II Guerra Fria A contradição entre os Artigos 3 e 51 da Carta precisa ser resolvida com urgência, se quisermos que a paz prevaleça de fato, tanto no solo, no mar e no ar, quanto em órbitas da Terra e até mais longe.

A propósito, relevante meta política em meio à I Guerra Fria logrou-se atingir no Artigo 4º do Tratado do Espaço: a proibição de instalar objetos portadores de armas de destruição em massa – nucleares, químicas e biológicas – em órbitas da Terra, nos corpos celestes e no espaço. Não se conseguiu, porém, proibir o voo suborbital de mísseis de longo alcance conduzindo tais armas na ogiva. Hoje, urge atualizar o Artigo 4º, impedindo o voo suborbital de mísseis militares e as novas armas espaciais que não são de destruição em massa, mas são capazes de provocar um conflito bélico de efeitos inestimáveis, como satélites assassinos, bloqueadores de sinais, diferentes métodos de interferência em espaçonaves “inimigas” e armas de energia dirigida (laser). O curioso no caso é que os criadores do Tratado do Espaço tiveram pleno êxito político ao desmilitarizar por completo a Lua e os outros corpos celestes, no § 2 do Artigo 4°, mas com relação à Terra, carente de paz, segurança e estabilidade, não foram além de desmilitarizá-lo apenas parcialmente.

Sério compromisso político foi concluído no Artigo 6º do Tratado do Espaço: Cada Estado é responsável internacional – ou seja, perante os outros Estados e os organismos internacionais – pelas atividades espaciais de suas entidades públicas ou privadas. Isso significa que os Estados têm a obrigação de autorizar e exercer vigilância contínua sobre as atividades espaciais de suas entidades não-governamentais (empresas privadas), para que cumpram o Tratado. No caso das organizações internacionais, essa responsabilidade cabe a elas e aos países que as integram.

O papel insubstituível do Estado (poder público) é confirmado no Artigo 7º do Tratado, que cria o conceito de Estado lançador – o Estado que promove ou manda promover o lançamento de um objeto ao espaço ou a um corpo celeste; ou o Estado, de cujo território ou instalações o objeto é lançado. O Estado lançador é sempre o responsável internacional pelos danos causados a outro Estado ou a suas pessoas naturais pelo referido objeto ou por seus elementos constitutivos, seja sobre a Terra, no espaço aéreo ou espaço exterior, e nos corpos celestes. Não importa que o objeto pertença a uma empresa privada ou que o lançamento seja privado. É o Estado que responde.

Valioso enfoque político foi aplicado no Artigo 9º do Tratado: As atividades no espaço e nos corpos celestes devem “fundamentar-se sobre os princípios da cooperação e de assistência mútua” e levar “devidamente em conta os interesses correspondentes dos demais Estados...” Assim, a “Cláusula do bem comum” foi enriquecida com o princípio de considerar, de modo adequado e correto, os interesses correspondentes dos outros países que também realizam atividades espaciais.

O Artigo 9º foi pioneiro em introduzir cuidados com a proteção ambiental da Terra bem antes deste tema empolgar a opinião pública. A ideia é evitar os efeitos danosos da contaminação e das modificações nocivas no meio ambiente da Terra, produzidos por substâncias extraterrestres. Criou-se ainda um sistema de consultas internacionais prévias caso se suspeite de que uma atividade ou experiência no espaço e nos corpos celestes possa prejudicar as atividades espaciais de outros países. Essas questões, claro, precisam ser atualizadas, com base nos avanços do Direito ambiental do nosso tempo, inclusive em atenção à necessidade cada vez maior de proteger o meio ambiente espacial, que vem sendo crescentemente agredido. (7)

Há, pois, fortes razões políticas para o fato de que o Tratado do Espaço esteja hoje ratificado por 104 países e assinado por 25 outros, além de ser amplamente aceito como costume internacional, dado que em quase seis décadas jamais foi objeto de protesto ou restrições pelos demais países. O que ele precisa mesmo, e com urgência, é de ser atualizado e aperfeiçoado, para se tornar mais efetivo.

Referências

1) Martha C. Nussbaum é professora emérita de Direito e Ética da Universidade de Chicago, EUA. Além do livro Sem fins lucrativos, lançado em 2015, ela já publicou no Brasil outros dois – Fronteira da Justiça e A fragilidade da bondade, todos editados pela Martins Fontes.
2) Tronchetti, Fabio, Fundamentals of Space Law and Policy, Springer, 2013, p. IX.
3) http://www.aeb.gov.br/wp-content/uploads/2013/03/PNAE-Portugues.pdf
4) O PESE foi criado em dezembro de 2008. http://www.defesa.gov.br/projetosweb/ cedn/arquivos/palestras-junho-2013/os-setores-estrategicos-da-end-aeroespacial.pdf.
5) Ver em “textos” no site www.sbda.org.br.
6) “U.S. Commercial Space Launch Competitiveness Act (H.R. 2262)”, lei aprovada pelas duas Casas do Congresso dos EUA e sancionada pelo Presidente Barack Obama, dedica seu Título IV ao tema da “Exploração e Uso dos Recursos Espaciais”. Seu parágrafo 51303, sobre “Direitos a Recursos do Espaço e a Recursos de Asteroides”, estabelece que “Sob este Capítulo, aos cidadãos dos Estados Unidos engajados na recuperação de recursos de asteroides ou do espaço será outorgado o direito sobre quaisquer recursos obtidos de asteroides ou do espaço, inclusive os de possuir, apropriar-se, transportar, usar e vender os recursos obtidos de asteroides ou do espaço, em conformidade com a lei aplicável, inclusive as obrigações internacionais dos Estados Unidos.” (“A United States citizen engaged in commercial recovery of an asteroid resource or a space resource under this chapter shall be entitled to any asteroid resource or space resource obtained, including to possess, own, transport, use, and sell the asteroid resource or space resource obtained in accordance with applicable law, including the international obligations of the United States.”)
7) Williamson, Mark, Space: the Fragile Frontier, EUA: AIAA, 2006.
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