quarta-feira, 7 de julho de 2010

Política Espacial dos EUA

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Obama muda a Política Espacial dos EUA, artigo de José Monserrat Filho

"Numa guerra espacial, as noções de ataque e defesa se confundem. Daí a ideia cada vez mais arraigada de que devemos impedir qualquer conflito no espaço"

José Monserrat Filho é vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), membro da Diretoria do Instituto Internacional de Direito Espacial, membro do Comitê Espacial da Internacional Law Association (ILA), membro eleito da Academia Internacional de Astronáutica, autor de "Direito e Política na Era Espacial: Podemos ser mais justos do espaço do quena Terra?" (Vieira&Lent, 2008), e atualmente chefe da Assessoria de Assuntos Internacionais do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Artigo enviado pelo autor ao "JC e-mail":

A nova Política Espacial dos Estados Unidos (EUA), lançada pelo presidente Barack Obama no dia 28 de junho último, é um avanço em relação à de seu antecessor, George W. Bush.

Começa fixando um princípio composto de três frases dignas de nota: "É do interesse comum de todas as nações atuar com responsabilidade no espaço para ajudar a prevenir acidentes, equívocos e desconfiança. Os EUA consideram a sustentabilidade, a estabilidade e a liberdade de acesso e utilização de espaço vital para seus interesses nacionais. As operações espaciais devem ser conduzidas de forma a enfatizar a abertura e a transparência para melhorar a consciência do público com relação às atividades de governo, e permitir que outras pessoas compartilhem dos benefícios gerados pelo uso do espaço".

Na primeira frase, os EUA assumem que o espaço é questão multilateral, e não unilateral, como se pretendia antes. Aplausos. É um grande progresso.

Já na segunda frase - "Os EUA consideram a sustentabilidade, a estabilidade e a liberdade de acesso e utilização do espaço vital para seus interesses nacionais" - repete-se o conhecido enfoque autocentrado. Com ela, Obama perdeu a chance de afirmar que "a sustentabilidade, a estabilidade e a liberdade de acesso e utilização do espaço é vital para o interesse de todos os países" - o que é rigorosamente verdadeiro. Seria a declaração de um líder com larga visão global.

Mas a terceira frase também é muito positiva: "As operações espaciais devem ser conduzidas de forma a enfatizar a abertura e a transparência para melhorar a consciência do público com relação às atividades de governo, e permitir que outras pessoas compartilhem dos benefícios gerados pelo uso do espaço". Aí, Obama, de novo, expressa a voz do bom senso universal, salientando a necessidade da transparência nas atividades espaciais e de ampliar o conhecimento público das ações governamentais neste campo estratégico.

Outro princípio da nova política merece aplausos: "Como reza o Direito Internacional, não haverá reclamações nacionais de soberania sobre o espaço exterior e qualquer dos corpos celestes. Os EUA consideram que os sistemas espaciais de todas as nações têm o direito de passagem e de conduzir operações no espaço, sem interferências. Qualquer interferência intencional em sistemas espaciais, incluindo infra-estruturas de apoio, será considerada violação dos direitos de um país".

Aqui, a menção ao Direito Internacional leva naturalmente ao Direito Espacial Internacional, que tem como seu código maior o Tratado do Espaço de 1967, ratificado hoje por 100 países, inclusive os EUA. Seu Artigo 2º determina que "o espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio".

Assim, ao proclamar que "não haverá reclamações nacionais de soberania sobre o espaço exterior", a nova diretriz dos EUA não apenas reforça a lei fundamental do espaço, como também responde com um claro "não" às pressões de fortes entidades privadas do país, como a National Space Foundation, empenhadas em anular o princípio da não-apropriação do espaço, de olho sobretudo no retorno de missões à Lua para explorar seus recursos naturais. (O premiado filme "Avatar" mostra como certas empresas poderiam agir no espaço e em outros corpos celestes.)

Com a nova política, os EUA reconhecem, igualmente, dois direitos dos países que realizam missões espaciais: (1) o direito de passagem sobre o território de outros países e (2) o direito de não sofrerem interferências de nenhuma forma. O direito de passagem foi proposto em 1979 pela então União Soviética, junto com o projeto de se fixar o fronteira entre o espaço aéreo e o espaço exterior na altura de 100-110 km da superfície da Terra.

À época, os EUA recusaram a proposta. E, pelo que se sabe, seguem contrários à delimitação do espaço exterior. Mas eis que resgatam do fundo do baú o direito de passagem. É uma grata surpresa. Resta saber se aceitarão, também, regulamentá-lo através de acordo. Afinal, eles têm se oposto, sistematicamente, a discutir novos tratados espaciais.

Quanto à adoção do princípio de que "qualquer interferência intencional em sistemas espaciais, incluindo infra-estruturas de apoio, será considerada violação dos direitos de uma país", há muito o que comemorar. Este compromisso, tudo indica, refuta o que foi chamado de "direito especial", criado pela Política Espacial do Presidente George W. Bush (2006), de negar "a liberdade de ação no espaço" aos "adversários", sem definir este termo.

Ressalto ainda, na nova política espacial dos EUA, o seguinte princípio: "Todas as nações têm o direito de explorar e usar o espaço para fins pacíficos e em benefício de toda a humanidade, de acordo com o direito internacional. Coerente com este princípio, o conceito de 'fins pacíficos' permite que o espaço seja utilizado para atividades de segurança nacional e da pátria (Homeland)".

A primeira frase reforça o compromisso da "não-interferência" nos sistemas espaciais dos outros países. A segunda, porém, levanta questões complicadas. As atividades de segurança no espaço implicam ações militares, que precisam ser devidamente regulamentadas para não acobertarem operações unilaterais e arbitrárias, promovidas em nome da segurança nacional e apresentadas como "atividades com fins pacíficos".

Tais temores crescem diante do último princípio da nova política: "Os EUA adotarão várias medidas para ajudar a garantir o uso do espaço para todas as partes responsáveis e, de acordo com o direito inerente de autodefesa, dissuadir os outros de interferir e atacar, defender os nossos sistemas de espaço e contribuir para a defesa dos sistemas espaciais aliados, e, se a dissuasão falhar, derrotar os esforços de atacá-los".

Surgem perguntas difíceis de responder: Quem decidirá se uma parte (país) é "responsável" ou "irresponsável"? Como utilizar legitimamente do direito inerente de autodefesa? Pode um país (ou um grupo deles) definir por contra própria a ocorrência de um ato de interferência de outro país em seus sistemas espaciais? Os EUA se comprometem a adotar "várias medidas para ajudar a garantir o uso do espaço para todas as partes responsáveis".

A intenção pode ser a melhor possível, mas será que basta para se atingir uma solução justa e agregadora? E qual será o papel das Nações Unidas, da comunidade mundial, nesta história que pode chegar a efeitos gravíssimos para um sem-número de nações? Já vimos que o mundo unipolar cria muito mais problemas do que resolve.

Tudo isto se torna ainda mais preocupante quando se lê a opinião de pesquisadores como George e Meredith Friedman, autores de "Poder Mundial - A Tecnologia e o Domínio dos Estados Unidos no Século XXI" (Viblioteca do Exército Editora, 2009), de que o único modo de os EUA protegerem seus satélites contra ataques, reais ou supostos, é atacando.

Quer dizer, numa guerra espacial, as noções de ataque e defesa se confundem. Daí a ideia cada vez mais arraigada de que devemos impedir qualquer conflito no espaço. Ele seria similar à guerra nuclear: não haveria vencedores. Só perdedores.

No final da introdução, a nova política enaltece o valor da cooperação internacional, que aparece, de fato, como a melhor das soluções: "Os EUA decidem renovar seu compromisso de cooperação na crença de que com a colaboração internacional reforçada e a revigorada liderança dos EUA, todas as nações e povos - os que realizam atividades espaciais e os que delas se beneficiam - hão de encontrar um horizonte alargado, seus conhecimentos aprimorados e suas vidas consideravelmente melhoradas".

O problema é que tudo isto só ganhará densidade, convicção generalizada e eficácia se tomar a forma de amplo acordo internacional, ou até mesmo de um código de conduta internacional, discutido e aprovado pela grande maioria dos países.

Fonte: JC E-mail, 6 de julho de 2010.
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