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Como regulamentar a exploração e o uso da Lua?
José Monserrat Filho *
“Não se pode ignorar que os corpos celestes, por sua própria natureza, levantam problemas específicos que requerem soluções específicas. Isto, de fato, já se reflete em algumas normas já adotadas”. Manfred Lachs1
Algumas empresas privadas norte-americanas estão empenhadas em conseguir mudar o Tratado do Espaço Exterior2, de 1967, ratificado por 103 países, inclusive os EUA, a China e as outras grandes potências espaciais, e assinado por outros 25. Considerado o código maior das atividades espaciais, o Tratado adota os princípios básicos que regulam a exploração e uso tanto do espaço, como da Lua e demais corpos celestes. Não será fácil encontrar consenso para alterá-lo, como exige o próprio tratado.
Uma de tais empresas, a Bigelow Aerospace, sediada em Nevada, EUA, fabricante de módulos infláveis para moradias e outras instalações, consultou a Administração Federal de Aviação (Federal Aviation Administration – FAA), encarregada de licenciar os voos espaciais privados, sobre as condições legais para estabelecer um assentamento na Lua – plano estimado em cerca de US$ 12 bilhões, a realizar-se em 2025. A notícia, exclusiva, foi distribuída pela Agência Reuters no dia 3 de fevereiro último e mereceu um artigo de Kenneth Chang publicado no “The New York Times”, logo após, no dia 9, sob o título “Um plano de negócios para o espaço”.
Na carta resposta enviada em dezembro passado, ainda segundo a Reuters, a FAA informou à Bigelow que “pretende alavancar a autoridade do atual regime de licenciamento para encorajar os investimentos do setor privado nos sistemas espaciais, com a garantia de que as atividades comerciais possam ser conduzidas sem qualquer interferência”. Em outras palavras, segundo a interpretação de “especialistas”: “A Bigelow poderá instalar uma de suas habitações infláveis na Lua e esperar receber direitos exclusivos sobre o seu terreno, bem como sobre as áreas relacionadas que possam ser utilizadas para mineração, exploração e outras atividades.”
No entanto, a própria FAA esclareceu: “Não demos [à Bigelow] licença para pousar na Lua. Falamos de uma revisão [da regulamentação] das cargas úteis, que, potencialmente, poderão ser parte de um futuro pedido de licença de lançamento [ao espaço]. Mas isso serve ao propósito de documentar uma proposta séria de uma empresa norte-americana para engajar-se numa atividade com alto nível de implicações políticas.” E disse mais: “Reconhecemos a necessidade do setor privado de proteger seus bens e seu pessoal na Lua ou em outros corpos celestes.”
Robert Bigelow, fundador da empresa requerente, disse à Reuters que a decisão da FAA de incentivar as atividades privadas no satélite natural da Terra, “não significa que há propriedade privada na Lua; significa apenas que ninguém está licenciado para pousar em cima de você e em cima de onde você realiza suas atividades de prospecção e exploração”.
A carta da FAA foi elaborada em coordenação com os Departamentos de Estado, de Defesa e de Comércio, e também com a NASA, o que pode significar que ela reflete a opinião do Governo dos EUA, afirma a Reuters. E destaca: a carta marca a ampliação da competência da FAA, que passa a licenciar também os lançamentos privados à Lua e demais corpos celestes, inclusive os asteroides. E salienta ainda o grande trabalho jurídico e diplomático que precisa ser feito para administrar o potencial desenvolvimento comercial da Lua e de outros corpos extraterrestres.
O caso FAA/Bigelow pode ser analisado com base em dois acordos internacionais, elaborados e aprovados pelo Subcomitê Jurídico do Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (UNCOPUOS) e adotados pela Assembleia Geral das Nações Unidas, antes de serem lançados à assinatura pelos Estados: o já referido Tratado do Espaço, de 1967, e o Acordo da Lua3, de 1979. Mas, aqui, cabe basear-se apenas no Tratado do Espaço, já que o Acordo da Lua não foi ratificado pelos EUA e nem por qualquer outra grande potência espacial.
Pelo Art. 1º, § 2º, a Lua pode ser explorada e utilizada livremente por todos os Estados sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o direito internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes. Exploração, aqui, quer dizer, estudo, pesquisa, enquanto utilização significa uso para manter o assentamento. Ou seja, a Bigelow pode pousar na Lua, para estudá-la e utilizá-la livremente, para a sua manutenção. Mas, para tanto, precisa de autorização do governo dos EUA. Isso porque, pelo Art. 6º, o governo dos EUA é responsável internacional pelas atividades realizadas na Lua pelos organismos públicos e por entidades não-governamentais, como empresas privadas, e tem o dever de autorizar e vigiar tais atividades continuamente. Quanto à determinação de que deve “haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes” – e da Lua, portanto –, ela certamente indica que o acesso a todas as regiões da Lua é livre e não pode haver qualquer empecilho, inclusive a propriedade privada, que possa impedir o acesso a elas.
Pelo Art. 2º, a Bigelow não verá a transformação em propriedade privada do local de seu módulo inflável, nem da região que ela explora e utiliza, pois “a Lua e demais corpos celestes não poderão ser objetos de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio”. Rand Simberg, pesquisador do Instituto Empresa e Competição, com sede em Washington, alega ter descoberto uma lacuna no Art. 2º: pode haver propriedade privada sem soberania nacional.4 Isto é, onde não há soberania nacional pode haver propriedade privada. Na Lua, não pode haver soberania, mas pode haver propriedade privada. Simberg, porém, não parece perceber que a soberania é que instala, consagra e protege a propriedade. Além disso, o Art. 2º é de abrangência total. Não deixa abertura para nenhuma outra interpretação: veda a apropriação da Lua por proclamação de soberania, por uso ou ocupação e por qualquer outro meio.
Por outro lado, pelo Art. 8º, os EUA, em cujo registro figuram os objetos da Bigelow lançados à Lua, conservarão esses objetos sob sua jurisdição e controle, enquanto eles se encontrem na Lua. Os direitos de propriedade sobre os objetos levados ou construídos na Lua, assim como seus elementos constitutivos, permanecerão inalteráveis enquanto tais objetos ou elementos se encontrarem na Lua e durante seu retorno à Terra. Os objetos ou elementos constitutivos de objetos encontrados na Lua deverão ser restituídos ao Estado em cujo registro estão inscritos, devendo esse Estado fornecer, sob solicitação, os dados de identificação antes da restituição. Para o Tratado do Espaço, os objetos da Bigelow são de responsabilidade dos EUA, mesmo que, para a legislação nacional norte-americana, eles sejam propriedade privada da Bigelow.
Pelo Art. 9º, os EUA, ao explorarem e usarem a Lua, deverão fundamentar-se nos princípios da cooperação e da assistência mútua, e exercerão as suas atividades na Lua levando na devida conta os interesses correspondentes dos demais Estados. Como as atividades da Bigelow estão necessariamente sob a responsabilidade dos EUA, elas devem também fundamentar-se nos mesmos princípios de cooperação e da assistência mútua, e levar em devida consideração os interesses correspondentes dos demais Estados e suas organização e entidades.
Ainda pelo Art. 9º, se os EUA têm razões para crer que uma atividade ou experiência realizada na Lua pela Bigelow, empresa privada nacional dos EUA, poderia criar um obstáculo capaz de prejudicar as atividades dos demais Estados e seus nacionais na exploração e utilização pacífica da Lua, os EUA deverão fazer consultas internacionais adequadas antes de empreenderem (ou autorizarem) a referida atividade ou experiência. Assim também, qualquer Estado que tenha razões para crer que uma experiência ou atividade realizada na Lua por outro Estado, ou por seus nacionais, criaria um obstáculo capaz de prejudicar as atividades de exploração e utilização da Lua, poderá solicitar a realização de consultar internacionais sobre a referida atividade ou experiência.
Pelo Art. 11, os EUA, para favorecer a cooperação internacional, concordam, na medida em que isto seja possível e realizável, em informar ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, bem como ao público e à comunidade científica internacional, sobre a natureza da condução das atividades da Bigelow, o lugar onde serão exercidas e seus resultados. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, por seu turno, deverá estar em condições de assegurar, assim que as tenha recebido, a difusão efetiva dessas informações.
Pelo Art. 12, as instalações, materiais e veículos espaciais da Bigelow na Lua deverão ser acessíveis, em condições de reciprocidade, a representantes dos demais Estados. Estes representantes notificarão, com antecedência, qualquer visita projetada, de modo a que as consultas desejadas possam realizar-se, e que se possa tomar o máximo de precauções para garantir a segurança e evitar perturbações no funcionamento normal da instalação a ser visitada.
A estas situações concretas conduz uma leitura atenta do Tratado do Espaço, tal como vigora ainda hoje, embora na visão de muitos especialistas ele necessite urgentemente ser atualizado, ainda que mantendo incólumes seus princípios basilares.
O Acordo da Lua, por sua vez, permite, em seu famoso Art. 11, § 5º, a exploração comercial e industrial (explotação) dos recursos lunares dentro de um regime internacional, a ser criado assim que tal explotação estiver prestes a tornar-se possível. Esse regime internacional teria como objetivo, entre outros, “promover a participação equitativa de todos os Estados Partes nos benefícios auferidos dos recursos lunares, levando em especial consideração os interesses e necessidades dos países em desenvolvimento e os esforços dos Estados que contribuíram, direta ou indiretamente, na exploração da Lua”. O Acordo da Lua, aprovado por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 1979, foi posteriormente rejeitado pelas principais potências espaciais, sobretudo em vista de sua definição da Lua e seus recursos naturais como “patrimônio comum da humanidade” e do princípio da participação equitativa dos benefícios resultantes dos recursos lunares entre os países em desenvolvimento e os desenvolvidos.
Hoje, às vésperas de se tornar viável a mineração na Lua e em asteroides, ainda não há – nem em debate – um acordo internacional para ordenar a explotação dos recursos dos corpos celestes. Trata-se de mais uma questão global, de interesse para todos os países e povos. Não pode nem deve ser resolvida de forma unilateral por um ou alguns países, sem “levar na devida conta os interesses correspondentes dos demais Estados” e de suas entidades nacionais, públicas ou privadas.
Os especialistas do Núcleo de Estudos de Direito Espacial (NEDE) da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), têm se manifestado a favor de que o Brasil assine e ratifique o Acordo da Lua, especialmente para gerar uma discussão mais aprofundada, em especial no âmbito das Nações Unidas, sobre como regulamentar a exploração das riquezas naturais situadas em outros corpos celestes, em benefício de todos os habitantes da Terra.
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). Este artigo reflete apenas a opinião do autor.
Referências
(1) Lachs, Manfred (1914-1993), The Law of Outer Space – An Experience in Contemporary Law-Making, The Netherlands: Martinus Nijhoff Publishers and International Institute of Space Law, 2010, p. 45.
(2) Ver texto total na seção de documentos do site www.sbda.org.br.
(3) Ver também na seção de documentos do site www.sbda.org.br.
(4) Ver Could legal 'loophole' lead to land claims on other world, Wired, Adam Mann, 05/04/2012, www.wired.com/2012/04/moon-mars-property/.
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