quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

"EUA: Congressistas Defendem Lei sobre Apropriação Privada das Riquezas Espaciais. Em vão", artigo de José Monserrat Filho

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EUA: Congressistas Defendem Lei sobre Apropriação Privada das Riquezas Espaciais. Em vão

José Monserrat Filho *

"O estado de direito implica aceitar que o direito internacional não é uma escolha à la carte" Sir Arthur Watts Kcmg QC (1931-2007), A Importância do Direito Internacional1

Membros do Congresso americano insistem: as normas que regulam os recursos espaciais na Lei2 promulgada pelo Presidente Obama, em 25 de novembro último, são “coerentes com o Tratado do Espaço3, e não constituem uma tentativa dos EUA de reivindicar soberania sobre o território em outros corpos celestes”, escreveu Jeff Foust no Space News, de 11 de dezembro4.

A nova lei regulamenta a explotação das riquezas dos corpos celestes, inclusive a Lua e os asteroides, por cidadãos e empresas americanas. Os minerais e a água que eles retirarem desses corpos a eles pertencerá. É uma lei nacional que legisla sobre uma questão internacional, de interesse para todos os países. Um problema global, como o tema em pauta, que afeta o interesse de todos os países, só pode ser ordenado globalmente por todos os países em conjunto, no âmbito das Nações Unidas. E só depois de ordenado globalmente pode ser regulado nacionalmente, aplicando no país, segundo suas especificidades, as normas e princípios adotados globalmente.

Foust começa citando o republicano Brian Babin (Texas), presidente da Subcomissão de Ciências da Câmara de Deputados, que falou no 10º Simpósio Anual Eilene M. Galloway5 sobre “Questões Críticas do Direito Espacial”, promovido pelo Instituto Internacional de Direito Espacial em Washington, no dia 9 de dezembro. Babin declarou que “a lei [Obama] garante a liderança americana no espaço e promove o desenvolvimento de tecnologias espaciais avançadas”.

Ocorre que uma lei nacional que “garante a liderança americana no espaço” não pode ser coerente com o Tratado do Espaço, pois esse Tratado, considerado o código maior do espaço e das atividades espaciais, já em seu Artigo I estabelece dois princípios básicos – a Cláusula do Bem Comum e a Liberdade de Exploração e Uso do espaço, assim expressos:

“A exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes,  deverão ter em mira o bem e o interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade.

O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, poderá ser explorado e utilizado livremente por todos os Estados sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o direito internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes.”

O que significam “Exploração”, “Uso” e “Explotação”? – “Exploração” tem o sentido de  “estudo, pesquisa, busca do conhecimento”, enquanto “uso” ou “utilização” quer dizer emprego de recursos espaciais para manter a missão espacial. Tal visão é amplamente admitida, tanto que consta do Artigo 6º do Acordo da Lua6, que diz, entre outras coisas, que “durante suas pesquisas científicas, os Estados (…) podem também utilizar minerais e outras substâncias da Lua na quantidade necessária para dar apoio a suas missões”.

Cabe lembrar que, no Artigo 1º, § 1, do citado Acordo, as cláusulas sobre a Lua “se aplicarão também aos outros corpos celestes do sistema solar, excluída a Terra, exceto nos casos em que entrem em vigor normas jurídicas específicas referentes a um desses corpos celestes”.

O termo “explotação” aparece pela primeira vez no Artigo 11, § 5, do Acordo da Lua, pelo qual “os Estados Partes se comprometem (…) a estabelecer um regime internacional (…) para regulamentar a explotação dos recursos minerais da Lua. Ao discutir os conceitos do Acordo da Lua, não se pode esquecer de que, embora tenha recebido até hoje apenas 16 ratificações (nenhuma de potência espacial) e quatro assinaturas (inclusive da França), ele foi aprovado por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Resolução 34/68, de 5 de dezembro de 1979).

Explotação equivale, portanto, a ação de operar com determinados recursos, visando obter lucros ou rendimentos comerciais.

É certo que a Lei Obama rejeita a reivindicação de soberania e a apropriação da área a ser minerada pelo cidadãos americanos e suas empresas. Na realidade, essa apropriação é inevitável. Não se pode obter ou extrair riquezas locais sem ocupar, ainda que temporariamente, a área do corpo celeste em que elas se encontram. Alegar que a lei não pleiteia direitos de soberania ou de posse não é senão um estratagema para escapar do Artigo II do Tratado do Espaço, com base no qual “o espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio”. De fato, porém, trata-se da ocupação de uma área à qual nenhum dos demais países terá livre acesso. Isso contradiz o Artigo I, § 2, do mesmo Tratado do Espaço, que institui a “liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes”.

Babin, como nota Foust, defende “uma das normas mais polêmicas da lei”, aquela que concede aos cidadãos americanos o direito de propriedade sobre os recursos por eles obtidos de asteroides e de outros corpos celestes. Babin diz que “infelizmente, tem havido uma série de mal-entendidos sobre a intenção e a legalidade” da nova lei. A seu ver, a lei requer que os recursos sejam 'obtidos' em ordem para que os cidadãos recebam a concessão de direitos sobre eles, um passo que requer mais do que apenas observações remotas. “Somente por meio da recuperação física, o direito se manifesta”, argumento Babin. Ou seja, para terem reconhecido o direito de propriedade sobre os recursos, os cidadãos americanos não podem apenas observá-los de longe, mas precisam ir lá onde os recursos se encontram e recolhê-los, extraí-los fisicamente (recuperação física ou “phisical recovery” é certamente um mero disfarce para evitar menção ao verbo extrair, pouco simpático, que é o que na verdade ocorre). Onde estão os mal-entendidos? O que bem se entende é um claro desacordo existente entre a nova lei e o Tratado do Espaço, que define o espaço como “province of all mankind” (incumbência de toda a humanidade), um bem comum de todos os países (Artigo I do Tratado), e não apenas deste ou daquele país e de suas empresas.

Babin também se opõe a qualquer esforço para criar um regime internacional com o objetivo de regular o acesso aos recursos espaciais, conta Foust. "Fazer isso é desnecessário e seria contraproducente", sustenta Babin. Ademais, num lance dramático, ele alerta para o "jugo opressivo de um órgão internacional enrolado no pescoço da inovação dos EUA".

Aqui, sim, há um enorme mal-entendido. “Desnecessário e contraproducente” para quem? Nenhum país ou empresa é obrigado a participar de um regime internacional capaz de oprimir sua capacidade criativa. Os regimes internacionais são criados de comum acordo com participação das empresas interessadas, e não minam necessariamente a criatividade das partes. Pelo contrário, podem muito bem estimulá-la. O regime internacional proposto no Artigo 11, § 5, do Acordo da Lua, por exemplo, incentiva a criatividade porquanto planeja “assegurar o aproveitamento ordenado e seguro dos recursos naturais da Lua; assegurar a gestão natural de tais recursos; e ampliar as oportunidades de utilização desses recursos”. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982, também criou a “Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos”, formada por todos os seus Estados Partes, “com vistas à gestão dos recursos da Área”. A ideia é assegurar a cada participante “os direitos e benefícios decorrentes de sua qualidade de membro”.7

Algo, com certeza, contraria fortemente os empresários e parlamentares que se bateram pela nova lei. É o princípio – que também integra o regime internacional sugerido pelo Acordo da Lua – da participação equitativa de todos os Estados nos benefícios auferidos da explotação dos recursos dos corpos celestes. Trata-se de conciliar interesses e esforços dos países desenvolvidos com interesses e necessidades dos países em desenvolvimento. O objetivo é impedir o aumento da concentração de renda no mundo e da desigualdade entre países, povos e pessoas. Isso contribui para a criação de um mundo mais justo, pacífico, estável, seguro e produtivo. Haveria clima melhor e mais construtivo para explotar as riquezas do espaço e ao mesmo tempo melhorar a vida de todos na Terra?

Curiosamente, a nova lei dos EUA precisa agora se adaptar ao Tratado do Espaço. O Artigo VI do Tratado estabelece a responsabilidade internacional dos Estados pelas atividades nacionais no espaço e corpos celestes, sejam elas exercidas por empresas públicas ou privadas. Por isso, cabe a cada Estado tanto autorizar, quanto supervisionar continuamente tais atividades. Os EUA assinaram o Tratado do Espaço em 27 de janeiro de 1967, como um dos países depositários do instrumento, ao lado da União Soviética e do Reino Unido. Apesar disso, entre os relatórios necessários hoje para a implementação da lei, está o que requer do Escritório de Política Científica e Tecnológica da Casa Branca a definição das “autoridades apropriadas de autorização e supervisão” do Tratado, pois as atividades comerciais no espaço não são regidas pelas licenças existentes. Isso permitiria aos EUA cumprir suas obrigações impostas pelo Tratado do Espaço. Agora, discute-se no Congresso que órgão poderá desempenhar essa função. Os principais candidatos parecem ser a Administração Federal da Aviação (FAA) ou a NASA. Babin não esconde sua preferência pela NASA. Mas o mais impressionante dessa história é que uma das mais importantes obrigações adotadas pelo Tratado do Espaço de 1967, seja cumprida somente agora, quase 50 anos depois de sua criação, por de seus mais influentes protagonistas e um de seus primeiros subscritores.

* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). 

Referências

1) “The rule of law involves accepting that international law is not an à la carte choise”; The role of law in international politics – Essays in internacional relations and internacional law, Edited by Michael Byers, United States of America, Oxford University Press, 2001, p. 7.
2) Ver www.gpo.gov/fdsys/pkg/BILLS-114hr2262enr/pdf/BILLS-114hr2262enr.pdf.
3) Ver na seção “Textos” no site 4) Ver: http://spacenews.com/congress-defends-commercial-space-bills-resource-rights-provisions/.
5) Ver http://www.iislweb.org/html/20130930_news.html.
6) Ver na seção “Textos” no site 7) Ver https://saudeglobaldotorg1.files.wordpress.com/2015/07/cnudm.pdf.
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