quinta-feira, 10 de março de 2016

"O papel das megaempresas nas atividades espaciais", artigo de José Monserrat Filho

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O papel das megaempresas nas atividades espaciais

José Monserrat Filho *

“Na guerra ou na paz, o setor privado se transformou em setor público.” John Kenneth Galbraith (1908-2006), renomado economista americano1

As empresas privadas não são novas nas atividades espaciais em geral. Elas atuam nessa área desde os anos 60, como pioneiras, por exemplo, dos satélites de comunicação. A presença delas está regulamentada pelo Art. 6º do Tratado do Espaço de 19672. Considerado a lei maior do setor, esse tratado está em pleno vigor. Ratificado por 103 países e assinado por 20 outros, é reconhecido pelos demais países como costume, por nunca ter sido alvo de qualquer tipo de protesto ou recusa.

O Art. 6º determina que os Estados arquem com a responsabilidade internacional pelas atividades espaciais nacionais realizadas tanto por organizações estatais quanto por empresas privadas e velem para que tais atividades cumpram os princípios e normas do Tratado do Espaço. Ainda pelo Art. 6º, as atividades espaciais das empresas privadas devem ser autorizadas e constantemente supervisionadas pelo respectivo Estado.

As empresas, pois, podem atuar no espaço, mas dependem da permissão e controle do país onde tenham sua sede central. Eventuais danos e prejuízos por elas causados a terceiros serão ressarcidos pelo Estado. Esse, depois, poderá cobrar das empresas a indenização paga.

Os sujeitos do Direito Espacial – ramo do Direito Internacional Público encarregado de criar o regime jurídico do espaço exterior e regular as atividades ali exercidas – não são as empresas privadas, são os Estados e as organizações espaciais internacionais ou regionais, como a Agência Espacial Europeia (ESA)3. O Tratado do Espaço é acordo de Estados, como o próprio nome diz. Muitas empresas privadas costumam participar apenas como consultoras, por exemplo, nas reuniões da União Internacional de Telecomunicações (UIT)4 – instituição de Estados.

O Estado – que representa ou deveria representar o poder público – situa-se, portanto, acima das empresas privadas, por mais poderosas que sejam. Isso é fundamental no Direito Espacial. Assim se relacionam Estados e empresas privadas, pelo menos formalmente. Essa questão deveria ser mais amplamente discutida, tanto do ponto de vista legal e político, quanto econômico.

Aí surge quem condene “a promiscuidade obscena entre políticos e empresários”, como o senador Bernie Sanders (1941-), candidato à Presidência dos Estados Unidos (EUA), com 86% das intenções de voto entre os eleitores democratas de 17-24 anos, embora não seja o favorito no pleito. Ele afirma: “Não representamos os interesses de Wall Street e das grandes corporações, nem queremos o dinheiro deles.” E formula propostas concretas: regulamentação do sistema bancário, quebrando os mamutes financeiros em proveito de pequenas instituições que se dediquem ao sistema produtivo e não a especular com papeis sem lastro na economia real.

Essas informações vêm de Daniel Aarão Reis (1946-), professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), em seu artigo “A primavera americana”, publicado n'O Globo, em 23 de fevereiro passado. A seu ver, “o 'fenômeno' Sanders evidencia o desgaste da hegemonia do capital financeiro e a descrença no establishment político”.

“Nos EUA, as manifestações dos jovens de todas as classes, pobres e remediados, todos eleitores de Bernie Sanders, revelam que o mal-estar se dissemina pelo mundo desenvolvido”, observa, por sua vez, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo (1942-)5. E salienta: “Nascidos do ventre das novas formas de negócios comandadas pelo enlace entre megaempresas e grandes bancos ‘globalizados’, os deserdados acompanham as lideranças que pretendem falar em nome do interesse público.” Belluzzo ironiza: “Não espanta que a retórica de Sanders nos EUA e de Jeremy Corbyn na Inglaterra dispare contra os símbolos do podre poder global, a Wall Street e a City londrina. A galera da finança retruca com a soberba e o descaso habituais. Para a turma da bufunfa, o que os deserdados da fortuna pensam, sentem ou reivindicam são deformações nascidas do egoísmo dos ignorantes, em contraposição ao egoísmo racional e esclarecido dos senhores da finança.”

Por falar em ironia, vale o que escreveu Veríssimo em sua crônica6 de domingo, 6 de março: depois de lembrar a famosa frase de Einstein – “Deus não joga dados com o universo” –, o cronista compara: “Deus não é um jogador, o universo não está aí para ele jogar contra a sorte e contra ele mesmo. Já os semideuses que controlam o capital especulativo do planeta Terra jogam com economias inteiras e podem destruir países com um lance de seus dados, ou um impulso de seus computadores, em segundos.”

Veríssimo vai ainda mais longe: “A metafísica dos semideuses é inédita. Não tem passado nem convenções. É a destilação final de uma abstração, a do capital desassociado de qualquer coisa palpável, até do próprio dinheiro. Como o dinheiro já é a representação da representação da representação de um valor aleatório, o capital transformado em impulso eletrônico é uma abstração nos limites do nada – e é ela que rege as nossas economias e, portanto, as nossas vidas.”

Com dose menor de ironia, John Kenneth Galbraith, amigo e conselheiro do presidente John F. Kennedy (de 1961 a 1963), notou – em seu livro “A Economia das fraudes inocentes: verdades para o nosso tempo”, lançado nos EUA em 20047 –, que, na visão estabelecida, “o sempre ameaçador ataque do governo à iniciativa privada” costuma ser “condenado como socialismo por retórica radical”, enquanto “os avanços das empresas privadas sobre o setor público por concessões de influências ou atividades são bem menos debatidos ou nunca o são”.

Para Galbraith, “a administração das empresas deve ter autoridade para agir, mas não para praticar furtos aparentemente inocentes. Considerando o poder das empresas, essa é a nossa necessidade mais desafiadora e urgente. Uma sociedade marcada por infortúnios e crimes econômicos corporativos não sobreviverá de forma útil e prestimosa”.

É a sociedade das corporações que comanda as principais atividades espaciais hoje, para a paz e/ou para a guerra, sem definir claramente onde acaba uma e começa a outra, como mostra a nova “Guerra Fria”, a que estamos todos condenados. Ou seja, são os semideuses da divina abstração que dominam, em grande escala, a Terra e o céu, sem permitir a regulação das questões básicas de segurança espacial.

Acaso não foi o lobby implacável dessas poderosas divindades que levou o Congresso e a Presidência dos EUA a aprovarem a lei de 25 de novembro de 2015, concedendo às empresas privadas americanas o direito de propriedade sobre minerais preciosos por elas extraídos dos asteroides, da Lua e demais corpos celestes? Essa lei nacional ousa regular uma questão obviamente internacional e viola de modo flagrante o princípio fundamental do Tratado do Espaço, que considera o espaço como um bem comum de toda a humanidade (the province of all mankind).

Como reagirão as nações do mundo aos semideuses, neste caso? Sairão mais uma vez vitoriosos os filhos de Zeus, com o privilégio de concentrar em seus polpudos bancos os trilhões de dólares que o negócio promete? Ou terão de se curvar ao bom senso, ao Direito Internacional e aos legítimos interesses e necessidades das grandes maiorias do nosso planeta?

* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA); Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial; Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA); e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.

Referências

1) Do livro “A economia das fraudes inocentes – Verdade para o nosso tempo”, São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 56.
2) Ver seção de textos em www.sbda.org.br.
3) http://www.esa.int/ESA.
4) http://www.tiaonline.org/policy/trade/international-telecommunication-union-itu.
5) Artigo intitulado “Os jovens de Bernie Sanders”, CartaCapital, 24/02/2016, p. 53.
6) Crônica de Luiz Fernando Veríssimo intitulada “Abstrações”, O Globo, 06/03/2016, p. 19.
7) Ver referência nº 1, pp. 72-73.
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