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EUA em Marte – Reflexões sobre a visão de Obama
José Monserrat Filho *
“O espaço, a nova fronteira, seria conquistado por pessoas jovens dominadas por antigos valores.” Gerard DeGroot, Dark side of the Moon, 2008, p. 109.
"Nós estabelecemos um objetivo claro, vital para o próximo capítulo da história dos EUA no espaço: enviar seres humanos a Marte por volta de 2030 e trazê-los de volta com segurança à Terra, com a ambição de que um dia eles fiquem lá por longo tempo", escreve o presidente Barack Obama sobre o projetado voo tripulado dos Estados Unidos ao planeta Marte, no texto publicado na CNN, em 11 de outubro, detalhando algo mais do que já dissera em 2015, em discurso sobre o estado da União.(2)
Há 55 anos, em 25 de maio de 1961, o então presidente John Kennedy lançava o desafio de "enviar homens à Lua e trazê-los de volta a salvo".(3) A semelhança dos dois casos certamene não é casual. Mas as épocas são distintas: a Guerra Fria dos anos 60 entre EUA e União Soviética se distingue em muito do que os analistas chamam agora de nova Guerra Fria entre EUA, de um lado, e China e Rússia, de outro – ambas com inestimável poder destrutivo no mundo inteiro. Hoje, ademais, há o perigo de guerra no espaço, capaz de afetar dramaticamente a vida cotidiana na Terra, onde os dados e imagens vindos do espaço se tornaram indispensáveis a todos os países e povos.
Obama não fala disso. O tema é desagradável, causa medo, mal estar. O presidente precisa ser positivo e otimista. Ele começa o texto recordando uma cena de sua infância: acomodado nos ombros de seu avô, acenava uma bandeira para astronautas. Mas a realidade sabidamente ameaçadora da Guerra Fria, de ontem ou de hoje, está sempre presente nas decisões e ações dos políticos, governos e corporações, sobretudo das grandes potências. Não pode não estar. É omitida, porém, como se nada existisse de anormal. As manifestações oficiais se tornam jardins de flores.
Êxitos dos EUA no espaço – Não por acaso, Obama lembra que, já nos primeiros meses de seu governo, em 2009, promoveu “o maior investimento em ciências básicas da nossa história” e, em visita ao Centro Espacial Kennedy, fez “um apelo em prol do fortalecimento do programa espacial americano, com mais exploração do sistema solar e um olhar sobre o universo mais profundo que nunca antes”. Depois, assinala ele, “revitalizamos a inovação tecnológica na NASA, prolongamos a vida da Estação Espacial Internacional e ajudamos as empresas americanas a criar um setor privado de empregos, capitalizando o potencial inexplorado da indústria espacial”.
E mais: Só em 2015, “a NASA descobriu água corrente em Marte e evidências de gelo numa das luas de Jupiter, e mapeou Plutão – a mais de 4,8 bilhões de kilômetros de distância – em alta resolução. Nossos telescópios espaciais revelaram novos planetas similares à Terra orbitando estrelas distantes, e realizamos novas missões para interagir com asteroides, que nos ajudam a aprender como proteger a Terra da ameaça de colisão com eles, e nos ensinam sobre a origem da vida na Terra. Já voamos a todos os planetas do sistema solar – nenhum outro pais pode dizer isso.” É a reiteração da liderança considerada imprescindível.
Empresas americanas voltaram ao mercado de lançamentos comerciais – Obama conta também que seu governo convocou algumas da lideranças americanas, entre cientistas, engenheiros, inovadores e estudantes, para uma reunião por esses dias, em Pittsburgh (no Estado da Pensilvânia), na qual serão traçados os caminhos para construir nosso progresso e definir novas fronteiras.
Ele relata ainda que “há apenas cinco anos, as empresas americanas foram colocadas fora do mercado global de lançamentos comerciais. Hoje, graças ao trabalho efetuado por homens e mulheres da NASA, eles dominam mais de um terço desse mercado. Mais de 1.000 empresas em quase todos os 50 Estados trabalham em iniciativas espaciais privadas”.
Foi, então, que Obama referiu-se à missão a Marte, com a frase que inicia este artigo. “Chegar a Marte vai requerer contínua cooperação entre o governo e os inovadores privados, e já estamos bem em nosso caminho”, explica o presidente e acrescenta, como que demonstrando desde já a capacidade das empresas: “Dentro dos próximos dois anos, companhias privadas estarão, pela primeira vez, levando astronautas para a Estação Espacial Internacional.”
A seguir, ele diz que o “o próximo passo é ultrapassar os limites da órbita da Terra” E confessa: “Estou animado em anunciar que estamos trabalhando com nossos parceiros comerciais na construção de novos 'habitats', capazes de sustentar e transportar os astronautas em missões de longa duração no espaço profundo. Essas missões nos ensinarão como os seres humanos podem viver longe da Terra – algo de que precisaremos na longa jornada no rumo de Marte.”
Obama recorda a frase de John Noble Wilford, repórter do The New York Times – que cobriu a chegada na Lua – sobre o planeta vermelho: “Marte toca nossa imaginação com uma força mais poderosa do que a gravidade”. E faz um agrado ao público infanto-juvenil: “Chegar a Marte exigirá um salto gigantesco. Mas os primeiros pequenos passos são dados quando nossos estudantes – a geração de Marte – se dirigem às suas aulas diariamente. A descoberta científica não ocorre da noite para o dia; resulta de anos de testes, paciência e compromisso nacional com a educação.”
A “geração de Marte” certamente terá papel relevante a cumprir na batalha por corações e mentes em favor da missão, que precisará do apoio da população americana – em crise.
“O presidente [Dwight Davi 'Ike'] Eisenhower [1890-1969] sabia disso”, frisa Obama numa clara reverência ao general heroi da II Guerra Mundial, que era republicano. E completa: “Em 1958, ele dedicou grandes recursos à educação de ciências e da matemática, ao mesmo tempo que criou a NASA. Por isso, sinto orgulho de termos superado importantes marcos na educação de ciências e matemática. Pela primeira vez, mais de 100 mil engenheiros se graduaram anualmente nas escolas americanas, e estamos no bom caminho para realizar meu objetivo de treinar 100 mil excelentes novos professores dessas áreas, em uma década.”
Pânico – Cabe lembrar que o novo programa educacional de Eisenhower foi planejado e executado como resposta ao pânico provocado nos EUA pelo lançamento, em outubro de 1957, do primeiro satélite artificial da Terra, o Sputnik-1, pela então União Soviética, que assim assumia na época a liderança da conquista do espaço, o que era inadmissível para o governo americano. (4)
Com a chegada de 12 astronautas americanos à Lua, entre 1979 e 1972, os EUA tornaram-se os líderes. Hoje, eles temem perder essa liderança para a China. (5) Daí o alerta de Obama: “Se tornarmos nossa liderança no espaço ainda mais forte neste século que no anterior, vamos nos beneficiar não apenas dos avanços nos campos da energia, medicina, agricultura e inteligência artificial, mas também de melhor compreensão do nosso meio ambiente e de nós mesmos”.
O presidente conclui de maneira romântica, onírica: “Algum dia espero carregar meus netos nos ombros. Ainda olharemos as estrelas com encantamento, como os seres humanos fazem desde o começo dos tempos. Mas em vez de aguardarmos ansiosos o retorno de nossos intrépidos exploradores, saberemos que, graças às escolhas que fazemos hoje, eles foram para o espaço não só para visitar, mas para ficar por lá – e, assim, para tornar melhor nossa vida aqui na Terra.”
“Romantismo numa hora dessas?”, um leitor do Veríssimo poderá perguntar.
Para um texto firmado pelo presidente dos EUA sobre a missão do país a Marte, faltam respostas a questões cruciais: Por que os EUA irão sozinhos a Marte, em parceria apenas com suas próprias empresas? Qual são as razões dessa decisão unilateral, que se opõe à globalização atual? Em quanto se estima o custo da missão? A crise econômica que atinge praticamente o mundo inteiro não pode prejudicar os planos americanos? Por que sequer se menciona a possibilidade de cooperação internacional em projeto tão caro e arriscado? Por que não criar um grande consórcio global, com a participação da Agência Espacial Europeia (6), da Rússia, da China (7), da Índia e de outros países interessados? Não Seria muito mais econômico, vantajoso e benéfico para todos?
A divisão de esforços no caso, é, sem dúvida, uma irracionalidade em escala cósmica. Já pensou a repercussão global dessa afirmativa se fosse dita, não por mim, mas pelo Obama?
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.co.
Referências
1) Gerard DeGroot, nascido na Califórnia, EUA, é professor de História Moderna na Universidade Santo Andrews, no Reino Unido. Seu livro O lado escuro da Lua – A magnífica loucura da busca americana pela Lua foi publicado em Londres pela Editora Vintage Books.
2) http://edition.cnn.com/2016/.
3) http://www.passeiweb.com/.
4) Divine, Robert A., The Sputnik challenge – Eisenhower's response to the Soviet satellite, USA, New York: Oxford University Press, 1993. Dickson, Paul, Sputnik – The shock of the century, USA: New York: Walker Publishing Company, 2001. Segundo esse último livro (p. 2), na época do Sputnik-1 “a Casa Branca, a CIA, a Força Aérea e uns poucos empreiteiros da áea de defesa altamente selecionados e de confiança estavam criando um satélite espião, que era tão secreto que apenas algumas pessoas sabiam disso. Até seu nome, Corona, permaneceu considerado secreto por muitos anos”.
5) http://www.defesaaereanaval.com.
6) Europa tenta pousar seu módulo espacial em Marte (Folha de S. Paulo, 17/10/2016).
(7) China quer ir a Marte em 2020 (Veja, 06/05/2016).
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Um comentário:
Mais um excelente texto do Sr. José Monserrat Filho. Enquanto ouvirmos como resposta que “o Brasil não precisa de foguetes, mas de educação, saúde e segurança”, seremos empurrados cada vez mais para o subdesenvolvimento. Esse tipo de asneira se ouve de qualquer um, não importando a classe social, nível acadêmico ou se o indivíduo supostamente é representante do povo. Sem querer de forma alguma desmerecer os investimentos em educação, que são mesmo fundamentais, o fato é que uma coisa não pode excluir a outra, pois são complementares. Se não tivermos uma indústria desenvolvida em bases competitivas, ou seja, em ciência e tecnologia, nossos melhores cérebros buscarão seus sonhos profissionais no exterior. E aí, vem a pergunta: estaremos investindo em educação para quem?
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