quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

"As novidades da cooperação espacial Brasil-França", artigo de José Monserrat Filho

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As novidades da cooperação espacial Brasil-França

José Monserrat Filho *

“Enxergar o que está diante do nosso nariz exige um esforço constante.” George Orwell (1903-1950), escritor inglês

O primeiro satélite brasileiro geoestacionário de defesa e comunicação (SGDC) será construído pela Thales Alenia Space. Para tanto, essa empresa francesa compromete-se a promover a absorção tecnológica por engenheiros brasileiros e a transferência de tecnologia para a indústria brasileira. Tais compromissos, considerados benéficos tanto para o Brasil quanto para a França, foram firmados em Brasília, no dia 12 de dezembro de 2013.

A data marca nova etapa na cooperação franco-brasileira em áreas estratégicas de ciência e tecnologia. Os presidentes dos dois países, Dilma Rousseff e François Hollande, prestigiaram a assinatura de acordos para a instalação de uma infraestrutura de computação de alto desempenho, a transferência de tecnologia para o satélite geoestacionário de defesa e comunicações estratégicas e novas ações do programa Ciência sem Fronteiras (CsF), para formar recursos humanos altamente qualificados.

Com ampla infraestrutura de computação de alto desempenho, a meta é transformar o Brasil em um dos líderes mundiais no setor nos próximos três anos. O plano prevê a aquisição de um supercomputador da empresa francesa Bull e a instalação de dois centros de pesquisa – um em Petrópolis, no Rio de Janeiro, em parceria com o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), e outro no Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A iniciativa beneficiará ainda a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e o Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI), entidades vinculadas ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

Assim, a nova fase de trabalho conjunto, projetada como abrangente e profunda, envolve indústrias de defesa e de bens de alta tecnologia – algo impensável há apenas um par de décadas.

A empresa mista brasileira Visiona Tecnologia Espacial S. A., por sua vez, firmou dois contratos: um com a empresa francesa Thales Alenia, para desenvolver o SGDC, e outro com a empresa Arianespace, também francesa, para lançar o satélite. A Visiona, primeira empresa brasileira prime-contrator (integradora), é uma joint-venture criada em 2012 pela entidade pública Telebras (Telecomunicações Brasileiras S.A.) e pela empresa privada Embraer S. A., tendo essa 51% e aquela 49% do seu capital.

A Agência Espacial Brasileira (AEB) e a Thales Alenia firmaram, a seguir, o memorando de entendimento que regula a absorção tecnológica e a transferência de tecnologia ao Brasil durante a construção do SGDC. O satélite pioneiro servirá para a comunicação do governo e para levar internet banda larga a municípios ainda não servidos pela Telebras.

Para Petrônio de Souza – diretor de Política Espacial e Investimentos Estratégicos da AEB, que assinou o memorando como presidente em exercício da AEB –, “o acordo de transferência de tecnologia é parte essencial do processo de aquisição do satélite”, incluindo sistemas eletrônicos a bordo, estruturas de maior porte e aplicações de dados.

Essa transferência abrange as telecomunicações via satélite, observação e meteorologia, entre outras áreas, e será concretizada ao longo de cinco anos. Ela é vista como base sólida para vários desenvolvimentos conjuntos e como parceria estrutural de longo prazo.

O plano de absorção e transferência de tecnologia, com início previsto para o próximo mês de abril, deve envolver cerca de 30 engenheiros brasileiros.

O mais alto mandatário da Thales Alenia, Jean-Loïc Galle, anunciou que a equipe da empresa “já está trabalhando duro para apoiar a estratégia de desenvolvimento espacial do Brasil, que vai garantir a independência e a soberania do país no médio prazo".

E o vice-presidente da Thales para América Latina, Cesar Kuberek, disse que o contrato firmado com a Visiona foi um dos cinco concluídos pela empresa em 2013, e foi o ponto de partida para ampliar a presença da Thales nos países da América Latina, “a fim de reforçar sua independência e soberania”, atendendo a clientes civis e militares. Segundo ele, a “parceria ambiciosa” com a AEB incluirá “o desenvolvimento futuro do sensoriamento remoto no Brasil”.

Vale notar que as promessas de “garantir” e “reforçar” a independência e a soberania dos países parceiros por parte de uma empresa de porte global como a Thales surgem como grata novidade nos 56 anos da história das atividades espaciais e certamente refletem as importantes mudanças ocorridas no mundo, sobretudo na última década.

A Era Espacial teve início em outubro de 1957, com o lançamento do Sputnik-1, mas a cooperação espacial entre os países foi contemplada com a primeira e até agora única resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 1996, ou seja, somente 39 anos depois.

Trata-se da “Declaração sobre a Cooperação Internacional na Exploração e Uso do Espaço Exterior em Benefício e no Interesse de todos os Estados, levando em Especial Consideração as Necessidades dos Países em Desenvolvimento”. Embora relevante, ela não é obrigatória. As resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas são apenas recomendações, não criam obrigações para os países. Ainda assim, são referências valiosas.

Isso significa que, em dezembro de 1996 – há cerca de 17 anos, portanto –, os então 192 países membros das Nações Unidas consideravam, como reza a dita Declaração, que “as necessidades dos países em desenvolvimento devem ser levadas em especial consideração”.

O que isso quer dizer concretamente? Quer dizer o seguinte:

# Os Estados têm liberdade para definir todos os aspectos de sua cooperação na exploração e uso do espaço exterior, em bases equitativas e mutuamente aceitáveis. Os termos contratuais devem ser justos e razoáveis e atender aos direitos e interesses legítimos dos participantes, como, por exemplo, aos direitos de propriedade intelectual.

# Todos os Estados, sobretudo os que dispõem de importante capacidade espacial e programas de exploração e uso do espaço, devem contribuir para promover e fazer avançar a cooperação em bases equitativas e mutuamente aceitáveis. Atenção especial deve ser prestada ao bem e ao interesse dos países em desenvolvimento e países com programas espaciais incipientes, assim como ao proveito que possam obter da cooperação com países dotados de capacidade espacial mais avançada.

# A cooperação deve ser conduzida por meio de modalidades que os países considerem mais efetivas e apropriadas, inclusive, inter alia, modalidades governamentais e nãogovernamentais; comerciais e não comerciais, globais, multilaterais, regionais e bilaterais; e cooperação internacional entre os países, em todos os níveis de desenvolvimento.

# A cooperação internacional, ao levar em especial consideração as necessidades dos países em desenvolvimento, deve perseguir, entre outros, os seguintes objetivos, tendo em vista a eficiente alocação de recursos:

– Promover o desenvolvimento da ciência e tecnologia espaciais e de suas aplicações;
– Estimular o desenvolvimento das capacidades espaciais relevantes e apropriadas nos países interessados;
– Facilitar o intercâmbio de especialistas e de tecnologias entre os países, em bases mutuamente aceitáveis.

# As agências nacionais e internacionais, as instituições de pesquisa, as organizações de ajuda ao desenvolvimento, bem como os países desenvolvidos e em desenvolvimento devem considerar o uso apropriado de aplicações espaciais e o potencial da cooperação internacional para alcançar seus objetivos de desenvolvimento.

# O Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço (COPUOS) deve ser fortalecido em suas atribuições, entre outras, como fórum para o intercâmbio de informações sobre as atividades nacionais e internacionais no campo da cooperação na exploração e uso do espaço.

# Todos os Estados devem ser estimulados a colaborar com o Programa das Nações Unidas de Aplicações Espaciais e outras iniciativas de cooperação internacional, segundo suas capacidades espaciais e sua participação na exploração e uso do espaço exterior.

Apesar de suas inegáveis virtudes, essa Declaração, elaborada e aprovada por consenso no COPUOS, após anos de intensos debates, com ativa participação do Brasil, esbarra, na prática, na necessidade de que os países se disponham efetivamente a cooperar, o que nem sempre acontece.

O princípio da aceitação mútua, sem a menor dúvida, é avanço notável. Em cooperação não pode haver imposições, como nos acordos leoninos do passado. Não por acaso, os países em desenvolvimento sempre recorreram e continuam recorrendo a esse princípio, pois ele representa uma defesa legal e ética do lado mais fraco na sua relação com o mais forte.

Ocorre que o lado mais forte pode usar a regra da aceitação mútua como forma de não cooperar, sobretudo para impedir o acesso do lado mais fraco às tecnologias avançadas, como as espaciais. Durante décadas esse acesso foi negado aos países em desenvolvimento.

Nesse contexto, não surpreende que, no fim dos anos 80, o Brasil tenha recorrido à China para, juntos, construírem um satélite de observação dos recursos naturais da Terra (Programa CBERS – China-Brazil Earth Resources Satellite). Que outro país na época – especialmente entre os mais desenvolvidos – aceitaria cooperar com tal objetivo?

Hoje, como vimos, alguns países desenvolvidos e grandes corporações já aceitam transferir tecnologias espaciais antes inegociáveis. Mas, mesmo admitindo-se a possibilidade de um bom negócio para o país receptor, conviria estudar o caso mais a fundo, para avaliar como esse processo de fato funciona e quais são suas implicações estratégicas.

Conhecer a realidade global, hoje mais que nunca, é essencial para o desenvolvimento e a autodeterminação de qualquer país, segundo seus próprios e legítimos interesses.

* Vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), diretor honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, membro pleno da Academia Internacional de Astronáutica e atualmente chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB)
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