segunda-feira, 26 de outubro de 2015

"Por que o Brasil e o mundo precisam da Telemedicina?", artigo de José Monserrat Filho

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Por que o Brasil e o mundo precisam da Telemedicina?

José Monserrat Filho*

“... não há lugar para a globrlização da indiferença.” Papa Francisco, Carta Encíclica Laudato Si' sobre o Cuidado da Casa Comum, § 52, 2015.

Telemedicina é “o exercício da Medicina através da utilização de metodologias interativas de comunicação áudio visual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em Saúde”, conforme a Resolução 1.643, de 7 de agosto de 2002, do Conselho Federal de Medicina. A telemedicina resulta das imensas conexões entre as tecnologias da informação e do espaço exterior e o universo da medicina, que geram acesso cada vez mais rápido e eficiente à informação necessária, dinamizam como nunca antes o trabalho de pesquisadores e profissionais da saúde, e ajudam a salvar mais e mais vidas e melhorar em grande escala as condições de existência de milhões de pessoas. Revoluciona-se o combate às doenças, prolonga-se a vida saudável em todas as idades e alargam-se as perspectivas de conferir, de fato, maior dignidade a todos os seres humanos.

Três grandes eventos do setor – O 7º Congresso Brasileiro de Telemedicina e Telessaúde, o 20º Congresso da Sociedade Internacional de Telemedicina e Telessaúde e o 1º Congresso de Telessaúde Rio de Janeiro serão realizados na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),  de 28 a 30 de outubro, com o tema geral “Telessaúde para Universalização da Saúde”.

Telessaúde, termo mais geral que telemedicina, é a transmissão de serviços de saúde ou informações sobre a saúde por meio de infraestrutura de telecomunicações. E telemedicina é uma forma específica de telessaúde: presta e promove – à distancia – serviços clínicos, educação e pesquisa em saúde.

O Brasil precisa da telemedicina porque é um país continental. Tem 8,5 milhões km² e 200 milhões de habitantes, dos quais mais de 30%, cerca de 54 milhões, vivem na pobreza e, deles, mais de 20 milhões são indigentes. Esses números contrastram com os notáveis avanços da medicina, inclusive no próprio país. Nosso sistema de saúde, extremamente precário, está longe de atender às necessidades básicas de milhões de brasileiros, até mesmo da classe média.

Vale esclarecer: Considera-se indigente quem não tem dinheiro nem para comprar alimentos e pobre, quem vive (sobrevive) com até meio salário mínimo por mês.

E no entanto as bases jurídicas do nosso sistema de saúde são muito adiantadas socialmente.

A Constituição do Brasil de 1988 reza em seu Art. 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” E o Art. 198 completa: “As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III – participação da comunidade.

Esses princípios – regulados pela Lei 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde) – são amplos e abrangentes. E confirmam: a Constituição é  mesmo “cidadã”, como proclamou Ulysses Guimarães, o Presidente da Constituinte. O desafio é criar e realizar as políticas sociais e econômicas indispensáveis para garantir sua implementação, com qualidade necessária dos serviços.

Nasceu daí o “Sistema Único de Saúde” (SUS), descentralizado mas com direção única, ligado ao Ministério da Saúde, que o define como "um sistema ímpar no mundo, que garante acesso integral, universal e igualitário à população brasileira, do simples atendimento ambulatorial aos transplantes de órgãos” Com o SUS, toda a população brasileira passou a ter direito à saúde universal e gratuída, financiada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (5.560).

A ideia, calcada em valores humanos, é excelente, mas sua efetivação é sofrível, como bem sabemos. Não estamos, porém, condenados a desistir dela. Pelo contrário. Ela é parte do longo e complexo processo de desenvolvimento da democracia brasileira, é produto de luta social e política, e deve ser colocada em prática sempre com o máximo empenho, aperfeiçoando-se a cada ocasião propícia e enfrentando todas as dificuldades que forem surgindo.

Instituições privadas complementam o SUS. Pelo Art. 199 da Constituição, “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada” e suas instituições “poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos”.

O Art. 199 veda “a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos”, “a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei”, e a comercialização de órgãos, tecidos e substâncias humanas para transplante, pesquisa e tratamento, além da coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados.

O Estado, portanto, tem o controle completo da saúde em todo o território nacional, de forma direta ou por meio de agências reguladoras – Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), criada em 1999, e Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), criada em 2000.

Pela lei que a criou, a ANS deve “promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no País”. Daí que a ANS vigia não só os contratos dos operadores privados com fornecedores (hospitais, clínicas, laboratórios), mas também os contratos com os usuários do sistema.

O Brasil deve cumprir o Direito Internacional na área crucial dos Direitos Humanos. Em decreto presidencial de 6 de julho de 1992, o País adotou, após a criação do SUS, o Pacto  Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 19 de dezembro de 1966. Pelo decreto, o Pacto “será executado e cumprido inteiramente como nele se contém”. O Art. 12 do Pacto estabelece “o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental”, bem como as medidas necessárias para “assegurar o pleno exercício desse direito”, que devem incluir: “a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento são das crianças; b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente; c) A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças; d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.” O SUS desempenha papel essencial nessas tarefas.

O Brasil também deve cumprir a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, o ambicioso programa “Transformando Nosso Mundo”, aprovado por unanimidade na Conferência de Chefes de Estado e de Governo de todo o planeta, reunidos para comemorar os 70 anos das Nações Unidas, em Nova York, de 25 a 27 de setembro passado. Com o contínuo aumento da desigualdade, essa é a globalização imprescindível à maioria dos habitantes da Terra. A Agenda 2030 tem 17 objetivos e 169 metas, a serem cumpridos nos próximos 15 anos. O Objetivo 3, “assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades”, inclui importantes metas:  1) reduzir a taxa de mortalidade materna global para menos de 70 mortes por cem mil nascidos vivos; 2) acabar com as mortes evitáveis de recém-nascidos e crianças menores de cinco anos, com todos os países objetivando reduzir a mortalidade neonatal para pelo  menos até 12 por mil nascidos vivos e a mortalidade de crianças menores de 5 anos para pelo menos  até 25 por mil nascidos vivos; 3) acabar com as epidemias de AIDS, tuberculose, malária e doenças tropicais negligenciadas, e combater a hepatite, doenças transmitidas pela água, e outras doenças transmissíveis; 4) reduzir em um terço a mortalidade prematura por doenças não transmissíveis por meio de prevenção e tratamento, e promover a saúde mental e o bem-estar; 5) assegurar o acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo o planejamento familiar, informação e educação, bem como a integração da saúde reprodutiva em estratégias e programas nacionais; 6) atingir a cobertura universal de saúde, incluindo a proteção do risco financeiro, o acesso a serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos; 7) reduzir substancialmente o número de mortes e doenças por produtos químicos perigosos e por contaminação e poluição do ar, da água e do solo.

Quem cumprirá essas tarefas no Brasil a não ser o SUS?

A telemedicina por satélite é desafio para o Brasil. O Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE – 2012-2021) não inclui ainda um projeto de telemedicina por satélite, mas afirma que “atender às crescentes necessidades e demandas espaciais do País” é “um grande apelo à inventividade e ao empreendedorismo no Brasil”. Ao responder à pergunta “Por que o espaço é indispensável ao Brasil?”, o PNAE responde: “Porque precisamos de mais telecomunicações (…), mais redução das desigualdades regionais, mais promoção da inclusão social”. Logo, precisamos de telemedicina por satélite, em especial para as regiões amazônica e nordeste.

Vários países da América Latina já perceberam que a telemedicina por satélite é excelente solução para os problemas de saúde pública. A Agência Espacial Mexicana e a Universidade Autônoma de San Luis de Potosí desenvolvem um projeto que prevê o uso de tecnologias espaciais para expandir os serviços de saúde a todo o país e atender às populações mais vulneráveis; o projeto reúne governo, academia e indústria. A Venezuela, através de sua agência espacial (ABAE), também está envolvida com um plano de telemedicina “para inclusão social nas zonas rurais e populações indígenas”, provendo serviços de radiografias, ultrasons, ressonâncias magnéticas, mamografias, biopsias e videos, além de outros. O plano inclui o uso do satélite de telecomunicações Simón Bolívar, fabricado na China e lançado de lá em outubro de 2008, para, de início, sistematizar e digitalizar prontuários médicos; criar uma base de dados de especialistas do país e do exterior; desenvolver uma plataforma web para solicitar horários; e equipar as unidades médicas do País com banda larga, fibra ótica e computadores. Na Argentina e no Chile, os programas de telemedicina se ampliam e ganham mais hospitais, mas ainda não usam satélites.  A Organização Pan-Americana de Saúde e a Organização Mundial de Saúde (OPS/OMS) facilitam aos Países o uso de salas virtuais para a comunicação direta de serviços médicos. Na Espanha, a telemedicina é um serviço público, gratuito e acessível a toda a população.

A telemedicina por satélite no Brasil ainda aguarda um ousado projeto pioneiro, de preferência público-privado, baseado na tríplice aliança – governo, academia e empresas privadas –, à qual poderia ser incorporada uma participação internacional. Quem se habilita?

* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). Este artigo expressa tão somente a opinião do autor.
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