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Que Terra estamos levando para o espaço?
José Monserrat Filho *
“Seríamos capazes de apagar o sol e as estrelas, porque eles não pagam dividendos.” John Maynard Keynes (1883-1946)1, economista inglês especialista em macroeconomia
A descoberta de água na Lua e agora em Marte mostra uma Terra bem equipada com cientistas capazes de realizar pesquisas espaciais muito complexas e importantes. Nossa astronomia e nossa astrofísica têm avançado em progressão geométrica nas últimas décadas.
Mapeamos o planeta Vênus com a sonda Magalhães. Lançamos e depois consertamos o Telescópio Espacial Hubble, produtor de imagens de estrelas, nebulosas e galáxias distantes. Mapeamos em detalhes o pano de fundo das radiações do Big Bang, a magna explosão original do universo, com sementes e aglomerados de galáxias. Comprovamos a existência dos “buracos negros”. Detectamos o primeiro asteróide extra-solar que tem água. Com a sonda Rosetta, pousamos um aparelho robot num asteróide para estudá-lo in loco. Capturamos imagem inédita em luz visível de um exoplaneta, com massa três vezes maior que a de Júpiter. Descobrimos que o Sol é o corpo mais redondo do Universo. E que Plutão, planeta anão, tem quatro luas: Hydra, Nix, Charon e P4, essa última com apenas 34 km de diâmetro. Constatamos que, ao contrário do que se pensava, as estrelas podem ter cauda como os cometas – Mira, estrela gigante e vermelha, é a prova. Descobrimos que Enceladus, uma das Luas de Saturno, exala vapor de água, o que a faria habitável como a Terra. Confirmamos a existência de 614 planetas em sistemas planetários, de 104 em sistemas planetários múltiplos, e de 2.321 candidatos a novos planetas fora de nosso sistema.
Já temos, assim, uma vasta ideia da imensidão do universo e continuamos voando a uma velocidade crescente. Mas esse progresso notável em relação à nossa própria história diz tudo sobre a Terra? Não, não diz. Eis alguns dados e observações de fontes relevantes que podem responder a essa pergunta:
De Washington Fajardo, arquiteto e urbanista, em Águas em Marte (O Globo, 3/10): “As descobertas sobre o universo imprimem delicadeza e singularidade ao nosso planeta, e escancaram quão pouco fazemos para cuidar dele, e o pouco que aplicamos de recursos tecnológicos para criar melhor conhecimento e conservação”. E mais: “As tecnologias que usamos para conhecer e detalhar nosso território parecem pedra lascada diante da precisão com que investigamos o solo marciano à distância de 60 milhões de quilômetros, isso na órbita mais próxima! Fica clara também a disparidade de desenvolvimento entre as diferentes sociedades terráqueas.”
De Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia de 2001 e professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), EUA, em seu novo livro The Great Divide (A Grande Divisão): “O 1% mais rico [da população] abocanha um quarto da renda e 40% das riquezas dos EUA”, e “o bem-estar das corporações foi engordando ao mesmo tempo que encolhiam os projetos de ajuda aos mais pobres. Um norte-americano típico ganha menos do que ganhava há 45 anos – feitas todas as correções. Uma em cada quatro crianças vive na pobreza”. Segundo Stiglitz, “essa crescente desigualdade destrói o mito dos EUA como terra de oportunidades, sabota a eficiência da economia e, principalmente, abala os pilares da democracia. O lema 'um homem, um voto' está sendo convertido em 'um dólar, um voto' ”. A seu ver, “a desigualdade galopante é fruto de políticas deliberadas e poderia ter sido evitada” e “o fosso social fabricado nos EUA – e replicado pelo mundo – impede uma recuperação mais robusta da economia, reforçando iniquidades e a concentração da riqueza”. A elite, nota ele, “está cada vez mais divorciada das necessidades da população”. (Folha de SP, 3/10)
Do Presidente dos EUA, Barack Obama, perante a Assembleia Geral da ONU, em 28 de setembro, comemorando os 70 anos da organização: “Redes brutais de terrorismo ocuparam o vácuo. As tecnologias que empoderam as pessoas estão agora sendo exploradas pelos que espalham desinformação ou reprimem a dissidência ou radicalizam nossos jovens. Os fluxos de capital global têm impulsionado o crescimento e os investimentos, mas também têm aumentado o risco de contágio, enfraquecido o poder de negociação dos trabalhadores e acelerado a desigualdade.” E ainda: “O que é o mais nefasto, vemos os temores de pessoas comuns serem explorados por meio de persuasões para o sectarismo ou o tribalismo, ou o racismo, ou o antissemitismo”. E também: “Chefio a força militar mais poderosa que o mundo já viu e jamais hesitarei em proteger o meu país ou nossos aliados, unilateralmente e à força quando necessário. Mas estou hoje diante de vocês com a absoluta convicção de que as nações do mundo não podem voltar às velhas maneiras de conflito e coerção. Não podemos retroceder. Vivemos em um mundo integrado – no qual todos nós temos interesse no sucesso do outro. Não podemos desprezar essas forças de integração. Nenhum país desta assembleia pode se isolar diante da ameaça do terrorismo ou do risco de contágio financeiro; do fluxo de imigrantes ou do perigo do aquecimento do planeta. A desordem que vemos não é induzida unicamente pela competição entre as nações ou por alguma ideologia. E se não pudermos trabalhar juntos de modo mais efetivo, vamos todos sofrer as consequências. Isso também se aplica aos EUA.”
Do Presidente da China, Xi Jinping, na tribuna da mesma Assembleia Geral da ONU: “A lei das selvas deixa os fracos à mercê dos fortes. Isso não é maneira de os países se relacionarem. Os países que recorrem à força se darão conta de que estão apenas levantando rochas que cairão sobre seus próprios pés. Devemos abandonar a mentalidade da Guerra Fria e fomentar nova visão da segurança sustentável.” E mais: “A crise financeira internacional de 2008 nos ensinou que permitir que o capital persiga cegamente o lucro pode apenas criar a crise e que a prosperidade global não pode ser construída sobre fundações instáveis de um mercado sem limites morais. A crescente diferença entre ricos e pobres é tanto insustentável quanto injusta. É importante para nós usar a mão invisível e a mão visível para criar sinergia entre as forças do mercado e a função de governo, bem como empenhar-se para alcançar tanto a eficiência quanto a equidade.” E também: “No mundo de hoje, perto de 800 milhões de pessoas ainda vivem em extrema pobreza, cerca de 6 milhões de crianças morrem a cada ano sem completar cinco anos, e cerca de 60 milhões de crianças não podem ir à escola.”
Do Presidente do Conselho de Estado e de Ministros de Cuba, Raul Castro: “O compromisso assumido em 1945 de 'promover o progresso social e dar melhores condições de vida' aos povos e elevar seu desenvolvimento econômico e social [segundo a Carta da ONU], continua sendo uma quimera, quando 795 milhões de pessoas passam fome, 781 milhões de adultos são analfabetos e 17 mil crianças morrem diariamente por causa de doenças evitáveis, enquanto as despesas militares anuais no mundo todo totalizam mais de 1,7 trilhão de dólares”.
Do Presidente Interino de Burkina Faso – o 4º país mais pobres do mundo –, Michel Kafando, também na Assembleia Geral da ONU: “A situação econômica global continua evoluindo de forma desfavorável, e, assim, é um desafio para nós, em especial diante do nosso compromisso comum de erradicar a pobreza nos países em desenvolvimento.” E depois: “Precisamos redobrar os esforços e tomar iniciativas ainda mais difíceis para melhorar as condições de vida de nossas populações.”
Como reação a esse quadro angustiante, a mesma sessão especial da Assembleia Geral da ONU que comemorou o 70º aniversário da organização aprovou por unanimidade o documento “Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”2 – com seus 17 novos objetivos globais e 169 metas. Essa agenda substitui e amplia a Declaração do Milênio do ano 2000, cujos oito objetivos deveriam ter sido alcançados até 2015 e não o foram. Ela continha alvos concretos, como reduzir pela metade a percentagem de pessoas que vivem na pobreza extrema, fornecer água potável e educação a todos, inverter a tendência de propagação do VIH/SIDA e alcançar outros objetivos no domínio do desenvolvimento. Pedia o reforço das operações de paz da ONU, para que as comunidades vulneráveis pudessem contar conosco nas horas difíceis. E também o combate à injustiça e à desigualdade, ao terror e ao crime, e proteção ao nosso patrimônio comum, a Terra, em benefício das gerações futuras.
Já o texto de agora, com objetivos e metas pós-2015, prevê “a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões, incluindo a pobreza extrema” – até 2030 – como “o maior desafio global e requisito indispensável ao desenvolvimento sustentável”. É o primeiro objetivo do plano “ousado e transformador”, a ser cumprido entre 2015 e 2030. Ou seja, em apenas 15 anos. O compromisso, ainda por cima, é “não deixar ninguém para trás”. Com a certeza de que, “se realizarmos nossas ambições em toda a extensão da Agenda, a vida de todos será profundamente melhorada e nosso mundo será transformado para melhor”. Mas fica a pergunta: será tudo isso possível em tão pouco tempo?
Para a revista científica inglesa Nature de 1º de outubro, “as últimas metas da ONU precisam ser traduzidas em políticas realistas”. Seu editorial reconhece que a iniciativa é “nobre” e que “o mundo, sem dúvida, poderá ser melhor com as metas traçadas para 2030, se seus objetivos forem atingidos”, mas considera que “ainda não está claro o impacto que os objetivos terão sobre os assuntos globais”. E diz mais: “A agenda buscada está clara, mas também estão claras as barreiras ao investimento. Elas incluem corrupção, instabilidade política, sistemas pobres de ensino, mau funcionamento dos marcos regulatórios e falta de mão de obra especializada. (…) Espera-se que o debate se estenda pelo próximo ano. Os cientistas devem trabalhar para garantir que os governos recolham e divulguem os dados. O próximo passo em direção aos objetivos do desenvolvimento sustentável é identificar uma gama de indicadores de saúde, econômicos e ambientais que possam ser usados para acompanhar o avanço. Cientistas e formuladores de políticas devem também redobrar os esforços para identificar estratégias eficazes – e politicamente viáveis – para se investir uma soma limitada de dinheiro. (...) Trilhões de dólares em investimentos públicos e privados nas próximas décadas estão sobre a mesa. A aplicação desse dinheiro em tecnologias certas e locais certos deverá percorrer longo caminho para melhorar a vida das pessoas.”
Isso vai depender, claro, do cumprimento dos compromissos agora assumidos por todos os Estados-Membros da ONU. Todos eles e nós todos, terráqueos, somos e sempre seremos responsáveis pelo que fazemos no espaço como prolongamento do que fazemos na Terra. E quem vai sempre nos cobrar, aqui em baixo e lá em cima, é a mãe natureza, que abraça todo o universo.
Tudo isso diz muito sobre a civilização humana que está explorando e utilizando o espaço neste momento da história. Não seria bom para o espaço receber uma Terra consideravelmente melhorada, como queria Bertrand Russel3?
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). Esse artigo expressa exclusivamente a opinião do autor.
Referências
1) Keynes defendeu em seu livro Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda a ideia de que o Estado é agente indispensável para se garantir um sistema de pleno emprego.
2) Ver http://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/.
3) O filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970) temia que os mais abjetos motivos estivessem por trás dos bilionários programas dos governos rivais (EUA-URSS) para tornar possível os voos espaciais tripulados. Segundo Manfred Lachs (1914-1993), ex-Presidente da Corte Internacional de Justiça, Bertrand Russel pediu aos homens que se abstivessem de ir à Lua e a outros planetas: “De minha parte, gostaria que houvesse mais sabedoria para conduzir os assuntos da Terra antes de levar nossas disputas estridentes e mortíferas a outros planetas.” A declaração, publicada no The Times, de 15 de julho de 1969, na página 9, está publicada no livro de Manfred Lachs El derecho del espacio ultraterrestre, lançado pelo Fondo de Cultura Económico em 1977. Esse livro saiu originalmente em inglês, em 1972 – The Law of Outer Space: An Experience in Contemporary Law-Making –, e foi reeditado em 2010 pelo Instituto Internacional de Direito Espacial e a editora Martines Nijhoff Publishers.
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