domingo, 10 de janeiro de 2016

"A “corrida do ouro” do século 21 é no espaço", artigo de José Monserrat Filho

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A “corrida do ouro” do século 21 é no espaço

José Monserrat Filho *

“Privatiza-se o público, mas não se publiciza o privado.” Giberto Dupas1

O presidente dos Estados Unidos (EUA) promulgou, em 25 de novembro de 2015, a lei HR 2262 sobre o direito privado de minerar asteroides, a Lua e outros corpos celestes.

A Folha de S. Paulo divulgou o fato em 6 de janeiro de 2016 – 40 dias depois. É difícil entender como um evento de tamanha relevância internacional tenha levado tanto tempo para merecer uma informação, ainda que incompleta. E ainda por cima sem dar detalhes da lei.

A Seção 402 do Título IV da nova lei tenciona facilitar “a exploração comercial e a recuperação comercial dos recursos espaciais por cidadãos dos Estados Unidos", e promover "o direito dos cidadãos dos Estados Unidos de se envolver em explorações comerciais tendo em vista a recuperação comercial de recursos do espaço livres de interferências prejudiciais, em conformidade com as obrigações internacionais dos Estados Unidos e sujeitas a autorização e supervisão contínua por parte do Governo Federal ".

Segundo o parágrafo 51303 da lei, os cidadãos dos EUA engajados na recuperação comercial de um recurso de asteroide ou de um recurso do espaço, sob este capítulo "terá direito a qualquer recurso de asteroide ou do espaço [assim] obtido, inclusive de possuir, apropriar-se, transportar, usar e vender os recursos de asteroides ou os recursos do espaço obtidos em conformidade com a legislação aplicável, incluindo as obrigações internacionais dos Estados Unidos ".

A nova lei americana peca antes de mais nada por legislar nacionalmente sobre um fato que pertence à jurisdição internacional. Desde o início da Era Espacial – inaugurada pelo Sputnik-1 em outubro de 1957 –, o espaço exterior é considerado bem comum da humanidade.

Por isso, só pode ser regulamentado pela comunidade de países, em especial através das Nações Unidas, onde foram discutidos, elaborados e aprovados os principais tratados (depois ratificados pelos Estados) e resoluções sobre as atividades espaciais, liderados pelo Tratado do Espaço, de 1867, o código maior do espaço.

Criar uma lei nacional para ordenar a atividade de mineração nos corpos celestes é um ato ilícito à luz da letra e do espírito do Direito Espacial Internacional. Basta ler os dois primeiros artigos do Tratado do Espaço. O Artigo I, § 1, determina que “a exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem e interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade”. E o Artigo II reza que “o espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio”.

A nova lei dos EUA, é verdade, não permite formalmente o estabelecimento de apropriação nacional sobre os corpos celestes. Ocorre que o direito de propriedade privada sobre os recursos espaciais está baseado num artifício no mínimo duvidoso: os astronautas americanos e sondas da União Soviética e do Japão recolheram amostras de rochas lunares e trouxeram-nas para a Terra apenas para fins de pesquisa científica; isso bastou para que alguns advogados americanos mais sagazes concluíssem, recentemente, pela existência prévia do direito de propriedade privada sobre recursos da Lua e de outros corpos celestes, inclusive, e em e especial, dos asteroides.

A debilidade da alegação fica evidente ante a igualdade que se busca estabelecer entre a coleta eventual de uma porção de amostras para fins científicos e a extração industrial sistemática de riquezas minerais para fins comerciais, com imprevisível impacto no mercado mundial do setor. É claro também que para desenvolver uma indústria extrativa num corpo celestes é preciso, queira-se ou não, instalar um complexo produtivo na área a ser minerada e fazê-lo funcionar durante o tempo necessário para esgotar as jazidas encontradas. Esse complexo será, com certeza, um estorvo ao cumprimento do § 2 do Artigo I do Tratado do Espaço, segundo o qual “o espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, poderá ser explorado e utilizado livremente por todos os Estados sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o direito internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes”.

O “acesso a todas as regiões dos corpos celestes” exige, necessariamente, que não se levante nenhum obstáculo para isso, muito menos uma instalação extrativa operada por um país ou empresa. A questão se complica mais ainda se o asteroide for carregado para dentro da nave espacial de um país ou empresa, a fim de ser melhor e mais completamente minerado. Seria o sequestro de um bem público.

A nova lei menciona “a recuperação comercial de recursos de asteroides e do espaço” (commercial recovery of an asteroid resource or a space resource). Por que usar o termo “recuperação comercial”, se a explotação comercial dos referidos recursos estará sendo realizada pela primeira vez? Como recuperar o que nunca antes foi achado ou perdido? Não haverá nenhuma forma de recuperação no caso. Haverá, sim, coleta, mineração ou extração de minerais. Por que substituir as palavras realmente adequadas para a questão?

Diz a notícia da Folha de S. Paulo que o presidente Obama “assinou a chamada 'Lei do Espaço' para promover a exploração privada do espaço, algo que já começou a ser realizado por empresas como a Space X e a Orbital ATK, com missões na Estação Espacial Internacional e planos além da órbita terrestre”. É um grande equívoco.

A contratação de empresas privadas para efetuar tais missões na estação internacional e também lançar satélites é ação legal, regulada por leis nacionais dos EUA, e nada tem a ver com o estabelecimento unilateral do direito de propriedade privada para empresas americanas sobre recursos de asteroides e do espaço, que só podem ser usados para bem e no interesse de todos os países, como “province of all mankind” (incumbência de toda a humanidade), ou seja, bens públicos, conforme o Tratado do Espaço. Os EUA tem todo o direito de estimular os planos e demandas de suas empresas privadas. O que não pode é fazer isso fora de sua jurisdição nacional.

A verdade é que ainda não existe um regime internacional discutido e aprovado no âmbito das Nações Unidas (Comitê para o Uso Pacífico do Espaço Exterior – COPUOS, em inglês), como tem ocorrido desde os primórdios das atividades espaciais. Tal regime poderá perfeitamente incluir a ativa participação de empresas privadas de qualquer país, como propõe o Acordo da Lua em seu famoso Artigo 11, ou como foi adotado pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982, e o acordo de 1995, que, como destaca Vicente Marotta Rangel, resultou da “conciliação de interesses discrepantes entre Estados industrializados, aptos a se beneficiar unilateralmente” dos recursos dos fundos (solo e subsolo) dos oceanos, tendo em vista conhecimentos tecnológicos adquiridos e a utilização de capital disponível, e os Estados em desenvolvimento, que pleiteavam “participação e controle dos recursos e dos benefícios deles resultantes”, além dos “Estados que seriam prejudicados pela exploração [explotação] de recursos minerais de que efetiva ou potencialmente dispõem”.3

Isso mostra que a conciliação de interesses é possível, necessária e urgente, como exigência política e legal para enfrentar com êxito os agudos conflitos que hoje assolam o planeta.

Sobre a “corrida do ouro”, sobretudo na Califórnia no século 19, o historiador americano  H. W. Brands (1953-) observa que ela difundiu-se pelo resto do país, e incorporou-se ao novo “sonho americano”. E explica: “O velho 'sonho americano'....era o sonho dos puritanos, do almanaque de Benjamin Franklin... de homens e mulheres satisfeitos com acumular una modesta riqueza pouco a pouco, ano após ano após ano. O novo 'sonho' é um sonho de riqueza instantânea, ganha num abrir e fechar de olhos, graças à audácia e à boa sorte. [Este] sonho dourado... converteu-se numa parte proeminente da psique americana...”4

Só que não é um sonho. É um pesadelo. Piora a situação global. Aumenta a concentração de renda, a desigualdade entre países e pessoas, e a tensão no mundo. Os EUA precisam acordar deste tsuname de egoismo.

* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: .

Referências

1) Dupas, Gilberto (1943-2009), Tensões contemporâneas entre o público e o privado, São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 19.
2) Ver https://www.congress.gov/bill/114th-congress/house-bill/2262/text
3) Reflexões sobre a Convenção do Direito do Mar, André Panno Beirão, Antônio Celso Alves Pereira (organizadores). – Brasília : FUNAG, 2014. O artigo de Vicente Marotta Rangel intitula-se “Fundos oceânicos”. De 1994 a 2015, Rangel foi Juiz do Tribunal Internacional do Direito do Mar, sediado em Hamburgo, Alemanha, entre 1994 e 2015.
4) Brands, H. W., The Age of Gold: The California Gold Rush and the New American Dream, Anchor, 2003.

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