Da Guerra Pré-histórica à Guerra no Espaço
José Monserrat Filho *
“É muito lenta a vida
E violenta demais toda esperança.” Guillaume Apollinaire (1880-1918), poeta francês¹
A guerra entre os humanos é mais antiga do que se pensava. Surgiu antes da agricultura e da vida sedentária, quando alguns grupos já detinham bens e ocupavam zonas de boa alimentação que outros grupos também necessitavam.
A ideia está sugerida na pesquisa publicada na revista inglesa Nature2, de 21 de janeiro, que descreve o massacre de 12 caçadores-coletores ocorrido há cerca de 10 mil anos, em Nataruk, no Quênia, África. O grupo todo era formado por 27 esqueletos insepultos, com pelo menos oito mulheres e seis crianças. O trabalho analisa a “Violência entre grupos de caçadores-coletores no início da Holoceno3, no Oeste da Turkana, Quênia” e foi realizado por arqueólogos do Centro Leverhulme para Estudos da Evolução Humana (Leverhulme Centre for Human Evolutionary Studies – LCHES) da Universidade de Cambridge, Reino Unido, sob a liderança de Marta Mirazón Lahr. Marta lecionou na Universidade de São Paulo (USP), onde se graduou em Biologia.
A Folha de S. Paulo logo repercutiu o estudo, em 22 de janeiro, com um bom texto de Reinaldo José Lopes. Apenas o título “A guerra mais antiga do mundo” é difícil de aceitar. Cientificamente indefensável, comete o pecado mortal do sensacionalismo. Sem fundamento, não merece estremecer uma página de ciência. Nada semelhante aparece no artigo da Nature. Mas a heresia pode não ser do autor. Seu mesmo texto, divulgado na Folha on-line, intitula-se, sensatamente, “Antropólogos acham 12 esqueletos de vítimas de guerra pré-histórica”4.
Marta e seus colegas concluíram que o ataque não foi casual, mas premeditado, planejado. Há indícios de conflito similar a uma guerra preparada. As atrocidades incluem o uso de pontas de pedra enfiadas no crânio ou em outras partes do corpo das vítimas, além de fraturas, cortes e esmagamento de ossos. Algumas vítimas, pelo visto, tiveram mãos e pés amarrados. Entre os sacrificados, aparentemente imobilizados, havia uma mulher na última fase de gestação.
As pontas de pedra encontradas dentro dos esqueletos, diz Marta, eram certamente de flechas. Os agressores, ao que parece, também usavam flechas sem ponta – como varetas afiadas –, porretes de dois tamanhos diferentes e uma arma – provavelmente um pedaço de madeira com lâminas nele inseridas – que provocou cortes profundos no rosto de duas das vítimas.
Em duas das três pontas de flechas inseridas nos esqueletos havia obsidiana, ou seja, vidro vulcânico – resultado de erupções, claro. Esse arsenal levou Marta a presumir que a chacina foi uma ação premeditada. Os caçadores-coletores não costumavam ir à caça levando tais armas, úteis e eficazes tanto para uso próximo como à distância. Entre as vítimas, havia muitas mulheres. Isso exclui a hipótese de um sequestro de concubinas, comum à época.
Os atacantes teriam vindo de longo e agido de forma planejada. O material trazido não existia no local da matança. O objetivo estratégico seria dominar a área dos atacados, onde haveria mais caça e recursos naturais a recolher.
Pulando 10 mil anos, chegamos a uma crueldade ainda maior. Ela envolve o preparo das guerras nuclear e no espaço, ainda não proibidas formalmente. Mas suas consequências deletérias são consideradas ilimitadas, incontroláveis, incalculáveis e imprevisíveis. Sobre o poder destrutivo dos ataques nucleares, por restritos que sejam, basta lembrar o que acorreu em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, nos dias 7 e 9 de agosto de 1945: mais de 240 mil vítimas civis.5
A inaudita violência comoveu poetas. Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) escreveu: “A bomba tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia.. A bomba envenena as crianças antes que comece a nascer/A bomba continua a envenená-las no curso da vida... A bomba é podre.” E Vinícius de Moraes (1913-1980) pediu: “Pensem nas crianças/Mudas telepáticas/Pensem nas meninas/Cegas inexatas/Pensem nas mulheres/Rotas alteradas/Pensem nas feridas/Como rosas cálidas/Mas oh não se esqueçam/Da rosa da rosa/Da rosa de Hiroxima/A rosa hereditária/A rosa radioativa/Estúpida e inválida/A rosa com cirrose/A antirrosa atômica...”6
O mundo tem hoje cerca de 15.850 armas nucleares, 4300 delas à disposição de forças operacionais e 1.800 mantidas em estado de alerta máximo. O arsenal pertence a nove países: Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, França, China, Índia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte. A informação é do Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo7 (Stockholm International Research Peace Institute – Sipri) e foi divulgada no início de 2015. O número de armas nucleares tem declinado lentamente, é certo, graças aos acordos entre EUA e Rússia. Em compensação, tais armas vem sendo modernizadas cada vez mais, para lhes ampliar a eficiência. Estima-se que são suficientes para aniquilar as 100 maiores regiões metropolitanas do mundo.
Uma guerra no espaço também poderá causar danos e perdas indizíveis à humanidade. É capaz de desativar sistemas satelitais de comunicação, televisão, internet, navegação e localização, previsão meteorológica, gerenciamento de desastres naturais ou provocados, socorro e salvamento de acidentados, monitoramento de recursos naturais, vigilância planetária, pesquisas astronômicas etc. Uma confrontação desse tipo, embora possa começar no espaço, tem chances de deflagar uma guerra total na Terra, como advertiu a revista American Scientific Brasil, no recente artigo “Guerra no espaço pode estar mais perto que nunca”.
Há muitos modos de desativar, cegar ou destruir satélites, além de explodi-los com mísseis. Uma nave espacial pode simplesmente se aproximar de um satélite e lançar tinta em seus dispositivos ópticos, ou quebrar suas antenas de comunicação, ou ainda desestabilizar sua órbita. Raios laser podem desmobilizar temporariamente ou danificar para sempre os componentes de um satélite, em especial seus delicados sensores. Ondas de rádio ou micro-ondas podem bloquear ou sequestrar as transmissões para ou dos controladores em solo. A perspectiva de guerra no espaço não é nova. Já se pensava nisso antes do lançamento do Sputnik-1, da ex-União Soviética, que inaugurou a Era Espacial em 4 de outubro de 1957. Armamentos e mísseis antissatélites começaram a ser projetados no fim dos anos 50.8 Os EUA chegaram até a testar bombas nucleares no espaço antes que o Tratado do Espaço de 1967 proibisse, em seu Artigo 4º, a colocação de armas de destruição em massa em órbitas terrestres.9
O Tratado do Espaço também não legaliza a guerra no espaço. Basta ler seu Artigo 1º: “A exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem e interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade.” E seu Artigo 3º: “As atividades dos Estados Partes deste Tratado, relativas à exploração e ao uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão efetuar-se em conformidade com o direito internacional, inclusive a Carta das Nações Unidas, com a finalidade de manter a paz e a segurança internacional e de favorecer a cooperação e a compreensão internacionais.” Já em seu Preâmbulo o Tratado do Espaço lavra o desejo de todos os Estados Partes de “contribuir para o desenvolvimento de ampla cooperação internacional no que concerne aos aspectos científicos e jurídicos da exploração e uso do espaço cósmico para fins pacíficos”.
Nem em passado relativamente recente, nem muito menos na pré-história, havia normas ou preceitos similares. Hoje há. Como, então, justificar a violência no espaço diante de princípios pacíficos e construtivos consagrados pela maioria absoluta dos países do mundo?
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.
Referências
1) A ponte de Mirabeau, de Guillaume Apollinaire, poema escrito em 1912, tradução de Nelson Ascher, Folha de S. Paulo, Ilustríssima, 24 de janeiro de 2016, p. 8.
2) Ver http://www.nature.com/nature/journal/v529/n7586/full/nature16477.html.
3) O Holoceno é um termo geológico para definir o período que se estende de 12 ou 10 mil anos – quando terninaram os efeitos da última glaciação – até a contemporalidade. Ver http://www.ecodebate.com.br/2012/08/08/holoceno-e-antropoceno-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/.
4) www1.folha.uol.com.br/ciencia/2016/01/1732253-antropologos-acham-12-esquletos-de-vitimas-de-guerra-pre-historica.shtml.
5) https://umhistoriador.wordpress.com/2012/07/15/hiroshima-e-nagasaki-o-maior-crime-de-guerra-contra-a-humanidade-segue-impune/.
6) http://www.academia.edu/3776200/A_Bomba_de_Carlos_Drummond_de_Andrade; www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/rosa-de-hiroxima.
7) http://www.sipri.org/media/pressreleases/2015/yb-june-2015.
8) www2.uol.com.br/sciam/noticias/guerra_no_espaco_pode_estar_mais_perto_que_nunca .html.
9) Ver na seção de textos do site www.sbda.org.br.
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