terça-feira, 10 de janeiro de 2017

"Política externa de empresas multinacionais?", artigo de José Monserrat Filho

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Política externa de empresas multinacionais?

José Monserrat Filho *

“Na guerra ou na paz, o setor privado se transformou no setor público.” John Kenneth Galbraith, A economia das fraudes inocentes – Verdades para o nosso tempo, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 56. (1)

O novo Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, o português Antônio Guterres, falando aos funcionários da ONU, em Nova York, no dia 3 de janeiro, “reclamou das nações mais ricas por sua negligência na hora de assumir suas responsabilidades em questões globais”, tema que gera muitos debates no mundo inteiro. Para Guterres, “vivemos num mundo em que se multiplicam os conflitos que se inter-relacionam com este novo fenômeno do terrorismo global. Conflitos nos quais se despreza o Direito Humanitário Internacional e se cometem graves violações dos direitos humanos, e nem sequer se respeitam os direitos dos refugiados.” (2)

Como as mais poderosas empresas do mundo devem reagir diante desta desordem geral? “Para poderem navegar pelas complexidades geopolíticas do mundo moderno, as empresas precisam 'privatizar' a política externa, internalizando muitos elementos tradicionalmente empregados na arte de governar”, recomenda a revista Harvard Business Review/Brasil, edição de setembro de 2016, no artigo de John Chipman “Por que sua empresa precisa de uma política externa – As multinacionais devem ficar atentas à crescente volatilidade geopolítica”. (3)

A revista vale-se do prestígio da Harvard University. Fundada em 1636 com campus em Cambridge, Massachusetts, essa é a mais antiga instituição de ensino superior dos EUA e goza de fama mundial. Em 2012, seu orçamento de 30 bilhões de dólares foi o maior de todas as universidades do mundo. Sua visão dos problemas tende a refletir a opinião do grande empresariado americano – não raro polêmica. (4) Chipman afirma, por exemplo, que, ante “a velocidade dos acontecimentos e as lentas reações dos EUA”, “o apetite para a intervenção tanto por parte dos decisores políticos dos EUA como do público está em declínio” e que, “como resultado, o mundo tende a ficar menos estável – esta é a primeira razão de as multinacionais se concentrarem novamente no risco geopolítico”. Mas será mesmo que a instabilidade atual do mundo se deve, ainda que em parte, à inapetência do intervencionismo americano? A invasão ilegal do Iraque não ocorreu em 2003?

O cenário global de hoje é bem mais complicado. Em artigo publicado no jornal Valor, de 6 de janeiro, Cristian Klein cita o jornalista e escritor Carlos Amorim, que lançou pela Ed. Record uma trilogia sobre o crime organizado. No terceiro volume, Assalto ao Poder, sobre a infiltração do crime em instituições do Estado e do mercado, Amorim enfatiza: “O crime organizado começa na favela e termina em Wall Street.” Klein procura explicar: “O crime organizado precisa de um mecanismo de autopreservação que exige atuação política. Não falo de bandido em cima de laje de favela, mas do crime infiltrado nas instituições públicas, na democracia, na economia formal.”

Para dar uma ideia da dimensão do fenômeno, Klein apresenta dados impressionantes: “A atuação das organizações criminosas em escala global movimenta, anualmente, de acordo com a ONU, entre US$ 3 trilhões e US$ 4 trilhões. É maior do que o PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil. Não seria possível movimentar tamanha quantidade de dinheiro sem o sistema bancário, de troca de capitais. É um leque amplo de envolvimentos, uma operação criminosa transnacional que envolve gente de todos os escalões sociais, e governos.” (5)

David Harvey, geógrafo e antropólogo britânico, professor emérito da Universidade da Cidade de Nova York e ex-professor das Universidades Johns Hopkins, nos EUA, e Oxford, no Reino Unido, considera, por sua vez, que “é estupidez tentar entender o mundo do capital sem levar em conta os cartéis de drogas, os traficantes de armas e as várias máfias e outras formas criminosas de organização que desempenham papel significativo no mercado mundial”. (6) Poderosas corporações financeiras, portanto, não podem não participar ativamente de tais atividades.

Em 1990, Jean Ziegler, então membro do Parlamento suíço, lançou o livro A Suíça Lava Mais Branco. Em 2015, 25 anos depois, entrevistado por Jamil Chade, do jornal O Estado de S. Paulo – lembra o Jornal GGN de 1º de março de 2015 –, Ziegler insiste na mesma acusação: “A Suíça é o principal local de lavagem de dinheiro do nosso planeta, o local de reciclagem dos lucros da morte”. Agora, com o vazamento das 100 mil contas secretas do banco HSBC na Suíça – notícia definida como “terremoto mundial” –, ele adverte: “É apenas a ponta do iceberg”. E esclarece: “Na maioria dos países, quem regula os bancos é um órgão estatal. Na Suíça, é uma empresa semi privada paga pelos bancos. Uma agência que regula bancos bancada pelos bancos.” E mais: o governo suíço “sabia que o dinheiro vinha das drogas colombianas, da máfia, do terrorismo e da lavagem de dinheiro. Mas até hoje nenhum processo foi aberto”. (7)

As relações entre empresas transnacionais e Estados tiveram sua fase mais crítica nas décadas de 1960-1970. Os princípios da soberania sobre os recursos naturais e da autodeterminação dos povos, sobretudo com a liberdade de escolha do regime político, da organização social e do modelo econômico – foram consagrados na Carta das Nações Unidas, de 1945, e nas propostas aprovadas pela Assembleia Geral nos documentos "Declaração de Estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Mundial" e "Plano de Ação para o Estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Mundial" e "Carta de Direitos e Deveres dos Estados". Meta principal: diminuir a disparidade de poder nas relações econômicas entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Essas posições do chamado “terceiro mundo” chocaram-se e ainda se chocam abertamente com a autonomia e a garantia de investimentos exigida pelas firmas transnacionais. (8) As Nações Unidas até hoje não lograram regulamentar a conduta dessas empresas, apesar dos vários projetos propostos. O sonho de consumo das transnacionais parece ser o de se tornarem sujeitos do Direito Internacional, como os Estados.

O Acordo que Regula as Atividades dos Estados na Lua e outros Corpos Celestes (Acordo da Lua) – preparado durante os anos 70 e aprovado por unanimidade pela Assembleia Geral da ONU, em 1979 – embora conte hoje com apenas 16 ratificações e quatro assinaturas – foi fortemente influenciado pelos países em desenvolvimento. Isso fica particularmente claro em seu Artigo 4º (“Especial atenção deve ser dada aos interesses das gerações presentes e futuras” e “à necessidade de promover níveis de vida mais elevados e melhores condições de progresso e desenvolvimento econômico e social”) e em seu Artigo 11, que define a Lua (e os outros corpos celestes) e seus recursos naturais como “patrimônio comum da humanidade” e cria um regime internacional para a explotação dos recursos naturais lunares baseada na participação equitativa de todos os Estados interessados – desenvolvidos e em desenvolvimento – nos benefícios auferidos de tais recursos. (9) As empresas transnacionais rechaçam categoricamente esse princípio.

Voltando ao artigo de Chipman, ele sustenta: “Hoje, as empresas assumem o controle direto de sua imagem e reputação internacional. Poucas desejam ser vistas principalmente como o braço comercial de uma nação em particular”. E cita um caso que caiu muito mal na opinião pública mundial: em 1954, a United Fruit Company foi cúmplice do golpe de Estado na Guatemala conduzido pelo governo dos EUA, que derrubou o presidente Jacobo Arbens Guzmán, democraticamente eleito. Arbens expropriara terras não utilizadas da empresa americana, dentro de um programa legal de reforma agrária, amplamente apoiado no país. 29 anos depois, no Chile, em 1973, o golpe chefiado pelo General Augusto Pinochet depôs o presidente Salvador Allende, também democraticamente eleito. Allende nacionalizara corporações americanas, inclusive a do cobre. O golpe mobilizou greves de caminhoneiros, tropas de açambarcadores de alimentos e produtos essenciais, e movimentos de protestos, com decisiva ajuda de Washington e financiamento de empresas transnacionais, que, graças ao regime militar, tiveram de volta suas propriedades. (10)

Por isso, com certeza, Chipman lembra: “Nos últimos anos do século 20, muitas empresas decidiram recuar para parecer politicamente neutras.”

Mas o próprio Chipman reconhece, logo depois: “A realidade do século 21 é que as empresas não podem escapar da política nem continuar a fingir que são neutras. A resposta é abraçar a necessidade de se engajar política e diplomaticamente.” E acrescenta: “Assim como as empresas conduzem regularmente a diligência jurídica, a financeira e outras tantas, devem se comprometer também com a diligência geopolítica.” Em vários níveis e esferas. As empresas devem ir do geral para o particular: “avaliar o risco transnacional”; “prestar atenção às tendências políticas regionais”; “avaliar o risco local”; e “ter cautela com o risco doméstico e com o risco ao redor”. Para Chipman, esse trabalho todo “requer uma equipe bastante sofisticada de analistas internos para avaliar continuamente o risco geopolítico, além de especialistas em assuntos internacionais”. Isso é vital para as empresas poderem desenvolver sua própria política externa.

“O primeiro princípio da diplomacia corporativa: as empresas devem criar a sua própria abordagem para governos estrangeiros em vez de manipular as políticas de seu país de origem ou ser influenciadas por elas”, aconselha Chipman. Ele frisa que “às vezes, as organizações (empresas) precisam se separar da política externa de seu país de origem”, mas acha que esse desenraizamento tem limites: “as empresas não devem se tornar tão apátridas” a ponto de sentir que não devem pagar impostos em lugar algum. E arremata: “Deixar de quitar um imposto devido sobre o lucro denota por si só ausência de boas práticas de política externa: pode prejudicar a reputação de uma empresa e levar a uma ação forte do governo.” Em países emergentes, alerta Chipman, “a política interna é particularmente volátil”; por isso, “o equilíbrio interno de poder entre atores-chave nas esferas econômicas e políticas deve ser continuamente monitorado”; e “o melhor seguro contra o risco político continua a ser um profundo e amplo conjunto de relações que reforce a licença da política implícita da empresa para operar de forma eficaz”, ou seja, concentrar riquezas em escala crescente.

Concluindo, Chipman salienta que “os processos de avaliação geopolítica das empresas devem ser abrangentes e sua política externa corporativa, astuta”. Daí que, cada vez mais, os investidores vão dar destaque às empresas transnacionais que primam pela aptidão e habilidade em política externa e pela capacidade de agir diante de choques geopolíticos.

O que seria uma “política externa astuta”? “Astuta” é a forma adjetiva de “Astúcia”, que, segundo o Dicionário Aurélio (versão 2004), quer dizer “habilidade de enganar, lábia, solércia, manha, artimanha, ardil”, além de “malícia e sagacidade”.

Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.

Referências

1) John Kenneth Galbraith (1908-2006), economista, filósofo e escritor norte-americano, conhecido por suas posições keynesianas, escreveu mais de 40 livros, muitos deles traduzidos para o português.
2) Antônio Guterres (1949-), diplomata, ex-diretor (2005-2015) da ACNUR, agência das Nações Unidas responsável pelas questões relativas aos refugiados. Em 2016, foi eleito Secretário-Geral da ONU, aclamado por todos os 193 Estados-Membros da organização.
3) Ver http://hbrbr.uol.com.br/por-que-sua-empresa-precisa-de-uma-politica-externa/.
4) Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Universidade_Harvard.
5) Ver http://www.valor.com.br/politica/4827968/crime-organizado-comeca-na-favela-e-termina-em-wall-street.
6) David Harvey (1935-), formado na Universidade de Cambridge, publicou Social Justice and the City e The Limits to Capital (sobre o pensamento econômico de Marx, com posições heterodoxas em relação a alguns aspectos da teoria marxista tradicional, como a teoria das crises).
7) Jean Ziegler (1934-), ex-professor de Sociologia das Universidades de Genebra e Sorbone, em Paris, é consultor do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e autor de 25 livros publicados em várias línguas, inclusive em português.
8) Resolução 3.201, de 1º de Maio de 1974, Resolução 3.202, de 1º de Maio de 1974) e Resolução 3.281, de 12 de Dezembro de 1974. Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Nova_Ordem_ Econ%C3%B4mica_Internacional. Seitenfus, Ricardo, Relações Internacionais, Barueri, SP: Manole, 2004. p. 131.
9) Ver texto completo do Acordo da Lua em www.sbda.org.br.
10) Seitenfus, Ricardo, Relações Internacionais, Barueri, SP: Manole, 2004. p. 131.
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