segunda-feira, 23 de março de 2015

"O Antropocentrismo e a Era Espacial", artigo de José Monserrat Filho

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O Antropocentrismo e a Era Espacial

José Monserrat Filho*

“A que nível de responsabilidade e solidariedade os indivíduos e grupos devem aspirar para o bem das gerações presentes e futuras?” Christian Brünner, em “A Ética no Espaço Exteior”1

O livro “Ética da Solidariedade Antropocósmica”, do filósofo brasileiro Olinto Antonio Pegoraro1, nos brinda com uma reflexão instigante sobre as origens e a atualidade daquela que ele chama de “a mais completa e harmoniosa visão do mundo”, elaborada pela Escola Estoica, que começou a se desenvolver no século IV a. C.

“A tese dos antiquíssimos estoicos”, afirma Pegoraro, “é a tese da recentíssima Carta da Terra, da Unesco”, lançada no ano 2000, que “nos convoca a olhar a Natureza e daí tirar as diretrizes de ações de respeito à totalidade do Universo”2. A Carta mostra um quadro dramático e urgente já no preâmbulo: “Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro reserva, ao mesmo tempo, grande perigo e grande esperança.”

O perigo está em que “a capacidade de recuperação da comunidade de vida e o bem-estar da humanidade dependem da preservação de uma biosfera saudável com todos seus sistemas ecológicos, uma rica variedade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo”.

A esperança está em que “somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum” e que “é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade de vida e com as futuras gerações”.3

Pegoraro lembra, porém, que “nós todos, e todas as gerações anteriores, fomos formados pela ética antropocêntrica, segundo a qual todas as coisas do universo (minerais, vegetais e animais) são subordinadas ao homem, e estão a nosso uso e consumo”. Descartes chamava o homem de “senhor e dono da natureza”.4 Pegoraro frisa que “hoje esse antropocentrismo não faz sentido”, porque “a ética transbordou para todas as realidades, trata da proteção das três formas de vida e do meio ambiente onde se desenvolve a vida, como a água, o ar, a luz e os sais minerais; no campo ético incluem-se necessariamente os produtos tecnocientíficos”. Logo, “a ética não é só das pessoas, mas da sociedade política e de todas as coisas do planeta Terra”.

Para o filósofo, “é espantoso constatar que nossa ética milenar não era universal, pois envolvia apenas o homem; agora, felizmente, estamos chegando à ética cósmica, na qual tudo o que existe, no macrocosmo infinitamente grande ou no microcosmo infinitamente pequeno, contém em si, na sua existência, dignidade ética”.5

Ele recorda que “a ética antropocêntrica sempre visou à virtude e à felicidade constituídas a partir do esforço humano, da educação e do hábito de praticar o bem e fazer atos justos” e que, por sua vez, “os estoicos buscaram exatamente o mesmo resultado a partir do reconhecimento de todos os seres como filhos da Natureza, donde resultava a 'convivência harmoniosa entre a natureza, o daimon (razão) que habita cada um de nós e a vontade do governador do universo'”, conforme escreveu o filósofo grego Crísipo (280-208 a. C.)6.

A tudo isso hoje, nota Pegoraro, chamamos ética da solidariedade antropocósmica, ou seja, “o reconhecimento do valor ético intrínseco à estrutura íntima de cada existência, seja pedra, palmeira, pássaro ou ser humano. Esse reconhecimento gera solidariedade, aliança, convívio (oikeiosis estoico) do ser humano com o cosmos”. Daí sua conclusão de que “estamos a caminho da 'ética universal concreta', e não de generalizações metafísicas”.7 A meta é alcançar “a aliança do homem com a natureza”, que antes era “o conjunto de coisas apenas com valor de troca” e hoje tem um “valor ético intrínseco”, pois, “por pressão da tecnociência, criamos paradigmas éticos não só temporais e provisórios, mas também abrangentes de todas as coisas: todas elas têm valor ético intrínseco à sua existência”.8

A Carta da Terra já incorpora o novo paradigma, ao assinalar que “a Terra, nosso lar, é viva como uma comunidade de vida incomparável; o bem-estar da humanidade depende da preservação de uma biosfera saudável com todos seus sistemas ecológicos, uma rica variedade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo. Enfim, a proteção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é um dever sagrado.”

E qual é o papel da tecnociência neste panorama? Aqui, Pegoraro nos leva até o filósofo alemão Martim Heidegger (1889-1976), que tem uma famosa conferência sobre a questão técnica. Com base em Heidegger, Pegoraro faz ampla acusação: “Foi justamente a tecnociência que criou o atual estado do mundo, tomado por máquinas de todo o tipo para produzir objetos, em espantosa variedade, concentrados em shoppings, supermercados, lojas e agências de automóveis, verdadeiros templos do consumo. Vivemos empilhados nos andares de imensos prédios urbanos em todo o mundo. Enfim, sentimo-nos sufocados pelos produtos técnico-científicos e quase perdemos o contato com a natureza, que submetemos à nossa dominação e devastação.”

Mas Pegoraro reconhece que Heidegger não culpa a tecnociência pela devastação que ela introduz no ecossistema. E aponta: “Culpada é a razão calculante, é o homo faber, que reduz a natureza a um reservatório de energia para mover a indústria poluente. A solução não é a destruição da tecnociência, mas a conversão do homem calculante em meditante, que vê a natureza integrada numa totalidade de sentido”.9

Rodrigo Nunes, professor de Filosofia da PUC-Rio, concorda e salienta: “Somos, em suma, uma espécie natural, cuja cultura, tendo modificado a natureza de maneira radical, agora se nos opõe com a resistência bruta e muda de uma natureza que parecemos incapazes de modificar.”

Até ontem, considerava-se “realista” quem se opunha à defesa da natureza em favor do que é “bom para a economia”. O que é ser “realista” hoje? Nunes responde com ironia: “No momento em que a ciência afirma que o planeta é incapaz de suportar o atual ritmo e modelo de desenvolvimento econômico, ser realista em relação à economia sem ser realista em relação a seu suporte físico é exatamente como acreditar que existe almoço de graça; que, contra toda a lógica, o planeta pode continuar a oferecer energia e absorver dejetos indefinidamente e cada vez mais rapidamente. Trata-se, em resumo, de um 'realismo' que completa  a certeza de que só se faz omelete quebrando ovos com a crença mágica numa Galinha dos Ovos de Ouro infinitamente dadivosa.”10

Algo muito semelhante se vê hoje no espaço exterior, quando as atividades ali exercidas se tornam cada vez mais necessárias à vida cotidiana das nações e povos do nosso planeta. Estamos nos aproximando velozmente da hora em que as órbitas mais utilizadas não mais suportarão o atual ritmo e modelo de desenvolvimento dos programas espaciais, seja pelo acúmulo de detritos, seja pelo perigo das armas que ali se planejam instalar com crescente determinação. O espaço corre o risco de se transformar em campo de batalha e teatro de guerra.

A abundância de luzes de alguns lugares da Terra vista do espaço não apenas polui a visão do Universo, como é um monumento ao desperdício.11

Pouco aprendemos na prática das ameaças de esgotamento da Terra, cada vez mais difícil de superar. A mesma lógica destrutiva insiste em ocupar o espaço próximo de nós e imprescindível à humanidade contemporânea. Há muitos planos para conter esse contínuo agravamento, é verdade. Mas quase nada sai do papel. Estamos rolando num plano inclinado e nossa reação é modesta e beira a irresponsabilidade. Falta uma verdadeira e sólida cooperação que una todos os países e povos na defesa da Terra, bem como do espaço e das atividades espaciais – bens de uso comum da espécie humana, que ainda sofrem os efeitos egoístas e daninhos do antropocentrismo.

* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). Este artigo reflete apenas a opinião do autor.

Referências

(1) Professor da Universidade de Graz, Áustria.
(2) Pegoraro, Olinto Antônio, Ética da Solidariedade Antropocósmica, Rio de Janeiro: Mauad X, 2014, p. 10.
(3) Do site www.cartadaterrabrasil.org. Ver também Boff, Leonardo, Ética e Moral, Petrópolis: Vozes, 2003, p. 109.
(4) René Descanter, filósofo, físico e matemático francês (1596-1650). Autor de “Discurso sobre o Método”, “Meditações sobre Filosofia”, “Princípios de Filosofia”, “As paixões da alma”.
(5) Pegoraro, Idem Ibid, p. 11.
(6) Bréhier, Émile, Les stoiciens. Paris: Gallimart, 1962.
(7) Pegoraro, Idem Ibid, p. 12.
(8) Pegoraro, Idem Ibid, p. 13.
(9) Pegoraro, Idem Ibid, p. 14.
(10) Nunes, Rodrigo, O realismo talvez não seja o que você imagina – A natureza também não dá almoço grátis, Folha de S. Paulo, Caderno Ilustríssima, p. 3.
(11) Extraterrestrial Altruism – Evolution and Ethcs in the Cosmos, Douglas A. Vakoch (Ed.), Germany, Berlin Heidelberg: Springer-Verlag, 2014, p. IX.
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