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Por que o turismo espacial voo mais depressa que o Direito Espacial?
José Monserrat Filho *
"O Estado assume e cuida de interesses gerais, enquanto no mercado atuam interesses particulares.” Sabino Cassese, professor da Faculdade de Direito de Roma1
O Prof. Gbenga Oduntan, nigeriano que leciona na Universidade de Kent, no Reino Unido, em recente artigo intitulado “O turismo espacial voa mais rapidamente que o Direito Espacial”2, diz que tudo vai bem com o turismo espacial – “conduzido por capital privado de risco com fins lucrativos” –, menos seu ordenamento jurídico.
Ele destaca que “estudos de mercado indicam haver hoje mais de mil passageiros por ano para voos suborbitais” e que essa cifra poderá gerar “um bilhão de dólares até o final da década”. Só a empresa norte-americana Virgin Galactic já teria assinado contrato com mais de 200 pessoas interessadas em visitar o espaço, num universo potencial de 30 mil. Já existem projetos adiantados de veículos suborbitais, como o XCOR e o Space Adventure, construídos especialmente para voos turísticos. E os 10 milhões do Ansari X-Prize continuam sendo acenados como estímulo à criação de novas soluções, ainda mais econômicas, nessa nova indústria turística para minorias ricas e aventureiras. Centenas de milionários já compraram passagem para o espaço pela módica quantia de 100 mil dólares cada. Só nos EUA cinco estados – Novo México, Oklahoma, Texas, Wisconsin e Flórida – já contam com Centros de lançamento de veículos espaciais para turistas. Os Emirados Árabes Unidos e Cingapura também planejam estabelecer tais centros. Ainda segundo o Prof. Oduntan, o Reino Unido planeja ter oito dessas bases, além de investir 90 milhões de dólares no desenvolvimento da nave híbrida, Skylon, que alguns alardeiam como “revolucionária”. A crise econômica nos países desenvolvidos não parece impedir a aplicação de fortunas em novos planos e equipamentos para alavancar o negócio do turismo espacial, que promete gordas recompensas.
O que poderia atrapalhar essa generosa perspectiva, na opinião do Prof. Oduntan? O Direito Espacial. A seu ver, “o Direito Espacial, no qual o turismo espacial deve se basear, continua desajeitado, feito, em geral, apenas para ser aplicado entre Estados soberanos”.
Neste sentido, para o Prof. Oduntan, “raro espírito do socialismo científico e jurídico internacional tem sido incutido no Direito Espacial desde sua criação por estadistas, burocratas internacionais e consultores científicos”. “Daí que – aduz ele – o Direito Espacial se origina louvavelmente em ideias fraternas, como 'incumbência de toda a humanidade' e 'patrimônio comum da humanidade', princípios fixados, respectivamente, no Tratado do Espaço, de 19673, e no Acordo da Lua, de 1979”4. Lembra ele também que: 1) pelo Acordo de Salvamento, de 19685, os astronautas e os objetos espaciais devem ser devolvidos a seus respectivos Estados, mesmo se caídos em território hostil; e 2) pela Convenção de Responsabilidade, de 19726, os Estados é que respondem pelos acidentes e danos causados por seus objetos espaciais, públicos ou privados.
Essas seriam, no dizer do Prof. Oduntan, as “ideias fraternas” do Direito Espacial, ao ser criado nos anos 60 e 70, em plena Guerra Fria. Os tratados da época, frisa ele, “pareciam todos bem estabelecidos no mundo pouco conhecido dos juristas espaciais, até o advento do turismo espacial”.
“Concebido amplamente em torno da ideia de participação privada nas atividades espaciais”, o turismo espacial teria vindo mudar a natureza dessas atividades. Isso gera “inquietação” entre “os conceitos e categorias jurídicas que exigiram grande esforço para serem postos em prática ao longo dos últimos 60 anos de regulamentação internacional das questões espaciais”.
O Prof. Oduntan sabe que “os Estados desempenham os papeis predominantes no espaço” e que eles respondem pelas atividades espaciais de suas entidades públicas ou privadas, conforme determina o Art. 6º do Tratado do Espaço. Mas ele entende que “isso é apenas o início da confusão terminológica, ideológica e social jurídica que aflige o direito e a prática do turismo espacial”.
Que confusão seria esta? O Tratado do Espaço é o código maior das atividades espaciais. Foi elaborado e aprovado por consenso pelo Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (UNCOPUOS). As duas principais potências espaciais nos anos 60 e 70, Estados Unidos e União Soviética, assim como todos os demais Estados membros do UNCOPUOS votaram a favor do Tratado, como fonte legal obrigatória para todos eles, definindo o que deve e pode ser feito no espaço ou a caminho do espaço, e nos corpos celestes.
Seu Art. 6º é claríssimo: “Os Estados-Partes do Tratado têm a responsabilidade internacional das atividades nacionais realizadas no espaço exterior, inclusive na Lua e demais corpos celestes, sejam elas exercidas por organismos governamentais ou por entidades não-governamentais... As atividades das entidades não-governamentais no espaço exterior, inclusive na Lua e demais corpos celestes, devem ser objeto de autorização e vigilância contínua pelo respectivo Estado-Parte.”
Por que acusá-lo de “desajeitado”? Por que ele não reconhece as empresas como sujeitos do Direito Espacial? O turismo espacial pode estar se desenvolvendo mais depressa graças à iniciativa de empresas privadas, que viram nessa atividade a oportunidade de bons negócios. Mas isso não é suficiente para alterar automaticamente o Tratado do Espaço, a começar por suas normas “fraternais”, que, não por acaso, tornaram-se princípios aceitos universalmente.
O próprio Tratado, claro, prevê possíveis emendas em seu texto. É um processo simples e democrático. Baseia-se na vontade expressa da maioria dos Estados-Partes. Hoje essa maioria é de 52 Estados-Partes, pois o Tratado já foi ratificado por 103 países. Segundo seu Art. 15, “qualquer Estado-Parte do Tratado pode propor emendas. As emendas entrarão em vigor para cada Estado-Parte que as aceite, após a aprovação da maioria deles, na data em que tiver sido recebida”.
O espaço e os corpos celestes são um bem público. Por isso, estão abertos à exploração e uso de todos os países, sem qualquer discriminação, em condições de igualdade, e, coerentemente, não podem ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio, de acordo com os Art. 1º, § 2, e Art. 2º do Tratado do Espaço.
Isso não quer dizer que as empresas privadas não possam ou não devam participar ativamente da exploração e uso do espaço e dos corpos celestes, inclusive a Lua e os asteroides. Em muitos casos, elas são dinâmicas, bem organizadas, criativas e muito produtivas. Mas devem ser autorizadas e vigiadas por seus Estados, e orientadas por leis internacionais capazes de beneficiar toda a comunidade global. Daí que o interesse privado pode, deve e precisa se submeter ao interesse público. O interesse público tem prioridade e prevalece sobre o privado, e não o contrário. Há quem venda a ideia do “mercado acima de tudo”, sob o argumento de que “o mercado resolve todos os problemas”. Isso é falso. Numa análise desinteressada e sensata, o mercado é apenas um meio, um instrumento, um item de planejamento, jamais um fim em si mesmo. Convertido em objetivo de vida, pode causar desastres sociais. Felizmente, a civilização humana já descobriu que o mercado, quanto mais desregulamentado e solto, mais irracional e desvairado fica, e vira fera, com consequências nefastas para toda a sociedade. Tal conhecimento ainda está longe de ser aplicado, de uma forma ou de outra, na maior parte dos países, embora alguns deles já estejam trabalhando neste sentido. Quem sabe não estará aí a grande revolução deste século?
A luta entre os interesses públicos e privados pela liderança dos processos econômicos, sociais e políticos globais está no cerne da corrida espacial e do Direito Espacial. O espaço exterior e os corpos celestes serão predominantemente públicos ou privados, conforme o resultado dos embates que se travam diante de nossos olhos, ainda que a maioria dos habitantes da Terra ainda não consiga enxergar nada disso. Impossível prever quem sairá vencedor. Mas talvez o espírito humanista e solidário, desenvolvido nos últimos séculos, possa pesar mais do que pesa hoje.
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). Esse artigo expressa exclusivamente a opinião do autor.
Referências
(1) Cassese, Sabino, A Crise do Estado. Campinas, SP: Saberes Editora, 2010, p. 145.
(2) Space Daily, 25/06/2015.
(3), (4), (5) e (6) Ver no site <www.sbda.org.br>, seção “Textos”.
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