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Propriedade privada sobre as riquezas dos asteroides?
José Monserrat Filho *
"Hoje, o espaço é livre. Não tem cicatrizes de conflitos. Nenhuma nação detém uma concessão lá. Essa situação deve permanecer como está. Nós, dos Estados Unidos, não reconhecemos a existência de proprietários do espaço exterior, que se julguem competentes para negociar com as nações da Terra sobre o preço do acesso a este domínio..." Lyndon Johnson, então Presidente dos Estados Unidos, sobre o Tratado do Espaço, em 19671.
“Quaisquer recursos de asteroide obtidos no espaço exterior são propriedade da entidade que obteve tais recursos, a quem devem ser atribuídos todos os direitos de propriedade daí decorrentes, de acordo com os dispositivos aplicáveis da Lei Federal.”
Eis o núcleo do projeto apresentado pelos deputados norte-americanos Bill Posey, republicano da Flórida, e Derek Kilmer, democrata de Washington, ao Comitê de Ciência, Espaço e Tecnologia da Câmara de Representantes dos Estados Unidos, em 19 de maio de 2015. Trata-se de emenda à Lei de Exploração e Uso de Recursos Espaciais (H. R. 1505), do mesmo dia 19 de maio.
A emenda intitula-se “Exploração e Uso de Recurso Espacial” e, no capítulo 513, § 01, adota as seguintes definições:
“(1) 'Recurso Espacial' significa um recurso natural de qualquer tipo encontrado 'in situ' no espaço exterior”;
“(2) 'Recurso de Asteroide' significa um recurso espacial encontrado na superfície ou no interior de um asteroide”;
“(3) 'Estado' significa qualquer um dos vários Estados, o Distrito de Colúmbia, a Comunidade de Porto Rico, Ilhas Virgíneas, Guam, Samoa Americana, a Comunidade das Ilhas de Mariana do Norte, a ainda qualquer outra comunidade, território ou possessão dos Estados Unidos”.
“(4) 'Entidade Comercial dos Estados Unidos de Utilização de Recurso Espacial' significa uma entidade que realiza a exploração de recurso espacial ou serviços de seu uso, cujo controle é exercido por pessoas outras que não o Governo Federal, o Governo de um Estado, o Governo Local ou um Governo estrangeiro, e que é (A) devidamente organizada conforme a Lei de um Estado; (B) sujeita-se à competência e à jurisdição individual dos tribunais dos Estados Unidos, ou (C) uma entidade estrangeira que se submeteu voluntariamente à competência e à jurisdição individual dos tribunais dos Estados Unidos”.
No § 02, a emenda estabelece que “O Presidente [dos EUA], atuando através de Agências Federais apropriadas, deve
(1) facilitar a exploração e o uso comercial dos recursos espaciais, para atender às necessidades nacionais;
(2) desencorajar barreiras governamentais ao desenvolvimento de indústrias viáveis, seguras e estáveis para a exploração e utilização dos recursos espaciais de forma consistente com as obrigações internacionais vigentes dos Estados Unidos; e
(3) promover o direito dos Estados Unidos e das entidades comerciais de explorar o espaço exterior e utilizar os recursos espaciais, em conformidade com as obrigações internacionais vigentes dos Estados Unidos, livre de interferências nocivas, para transferir ou vender tais recursos.”
No § 03, sobre a “base jurídica”, fixam-se as seguintes definições:
“(a) Direitos de Propriedade – Quaisquer recursos de asteroide obtidos no espaço exterior são propriedade da entidade que obteve tais recursos, a quem devem ser atribuídos todos os direitos de propriedade daí decorrentes, de acordo com os dispositivos aplicáveis da Lei Federal.”
“(b) Segurança de operações – Uma entidade comercial dos Estados Unidos de utilização de recursos do espaço deve evitar causar uma interferência nociva no espaço exterior.”
“(c) Ações civis para evitar a interferência prejudicial – A entidade comercial dos EUA que usa recursos espaciais pode iniciar ação cível por reparação jurídica ou equitativa adequada, ou ambas, nos termos deste capítulo, em vista de qualquer ação efetuada por outra entidade sujeita à jurisdição dos EUA, que cause interferência nociva às suas operações relativas a uma atividade de uso de recursos de asteroide no espaço exterior.”
“(d) Norma de decisão – Numa ação cível realizada conforme o subsetor (c) ante uma atividade de uso de recursos de asteroide no espaço exterior, o tribunal deve jugar em favor do demandante, se o tribunal entender que
(1) o demandante
(A) agiu segundo todas as obrigações internacionais em vigor dos Estados Unidos; e
(B) conduziu a atividade pela primeira vez; e
(2) a atividade é razoável à exploração e ao uso dos recursos de asteroides.”
“(e) Jurisdição exclusiva – Os tribunais distritais dos Estados Unidos devem ter a jurisdição original sobre uma ação submetida a este capítulo, independente do montante do litígio.”
Esta emenda deve ser analisada à luz do Direito Espacial Internacional em vigor, a começar pelo Tratado do Espaço, de 1967, visto universalmente como a Lei Magna do espaço e das atividades espaciais. Isso porque a exploração e o uso de recursos naturais da Lua e demais corpos celestes, inclusive dos asteroides, são, acima de tudo, uma questão internacional, e não nacional. Questões globais como essa devem e precisam ser ordenadas globalmente.
O Tratado do Espaço, já em seu Artigo 1º, § 1º, reza que “a exploração e o uso do espaço exterior, inclusive a Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem e o interesse de todos os países, qualquer que seja o de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade”. Ora, se as atividades dos países no espaço exterior, inclusive nos corpos celestes como os asteroides, incumbem a toda a humanidade, ou seja, a todos os países e povos, isto significa que tais atividades e o próprio espaço exterior, inclusive os corpos celestes, devem ser regulamentados, primeiramente, pela comunidade de países em seu conjunto, e não por apenas um país, de forma unilateral e alheia ao bem e ao interesse de todos os países.
Não por acaso, ainda no Artigo 1º, § 2º, o Tratado do Espaço estabelece que “o espaço exterior, inclusive a Lua e demais corpos celestes, poderá ser explorado e utilizado livremente por todos os Estados sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o Direito Internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes”.
Para que todos os países possam explorar e usar livremente o espaço exterior e os corpos celestes, o espaço exterior e os corpos celestes não podem ser propriedade de nenhum país ou grupo deles, mas espaço comum de todos. Por essa lógica natural, o Artigo 2º do Tratado determina que “o espaço exterior, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio”. Com base nos princípios fundamentais do Tratado é que se formam as leis nacionais, e não o inverso. Os acordos de Direito Internacional ratificados por um país têm precedência sobre seu Direito interno. Essa é a boa norma, ainda mais num mundo tão globalizado como este em que vivemos hoje.
O espaço exterior e os corpos celestes são espaço comum2 de todos os países. Logo, nenhum país em particular tem o direito de instituir o regime de propriedade dos recursos espaciais e de sua exploração industrial e comercial. É uma ação unilateral e arbitrária que usurpa o direito dos outros países a explorar e usar livremente o espaço e os corpos celestes, além de violar o princípio da não-apropriação.
E ainda pode contribuir, em escala inestimável, para concentrar as já concentradíssimas riquezas do mundo.3
Neste contexto, o Presidente dos EUA não pode “facilitar a exploração e o uso comercial dos recursos espaciais” apenas para atender às necessidades nacionais. Ele deve ter em mira “o bem e o interesse de todos os países”, conforme a letra e o espírito do Tratado do Espaço.
Por outro lado, o Presidente dos EUA deve, sim, “desencorajar barreiras governamentais ao desenvolvimento de indústrias viáveis, seguras e estáveis para a exploração e uso dos recursos espaciais em consonância com as obrigações internacionais vigentes dos EUA”, ou seja, com o regime internacional de propriedade e de exploração e uso dos recursos espaciais, a ser criado pela comunidade de países, nos quadros das Nações Unidas, e, espera-se, adotado pelos EUA, como aconteceu nas primeiras décadas da Era Espacial. Vide as palavras de Lyndon Johnson.
O Presidente dos EUA pode e deve, também, “promover o direito dos EUA e de suas entidades comerciais a explorar o espaço exterior e usar os recursos espaciais, em conformidade com as obrigações internacionais vigentes dos EUA, livre de interferências nocivas, para transferir ou vender tais recursos”. Essas obrigações poderão incluir o regime de propriedade e de exploração dos recursos espaciais a ser necessariamente criado nos quadros das Nações Unidas, a exemplo dos instrumentos espaciais aprovados, assinados e ratificados desde o Tratado do Espaço de 1967.
Os direitos de propriedade sobre recursos obtidos de um asteroide não podem ser atribuídos à entidade privada que os obteve com base em lei e tribunais nacionais. Isso é, antes de mais nada, prerrogativa da comunidade internacional, representada pelas Nações Unidas, que reúne a maioria esmagadora dos países e é o único fórum mundial que legisla sobre o espaço desde 1958.
Diz a emenda que “a entidade comercial dos EUA que usa recursos espaciais deve evitar causar interferências nocivas ao espaço exterior”. Na realidade, pelo Artigo 6º do Tratado do Espaço, os Estados – e não as entidades comerciais – é que são internacionalmente responsáveis pelas atividades espaciais de suas empresas públicas ou privadas e, portanto, pelas interferências nocivas causadas por essas entidades ao espaço exterior.
Ademais, a proteção do meio ambiente espacial e dos corpos celestes é questão complexa. Vai além de interferências nocivas. Não se pode explorar um asteroide ou qualquer outro corpo celeste sem antes realizar um estudo profundo de seu equilíbrio ambiental. Isso é da competência dos Estados, os guardiães naturais do bem e do interesse público (mesmo que não o queiram), e não de entidades comerciais, cujo objetivo principal é promover e defender interesses privados.
Segundo a emenda, em caso de litígio entre entidades comerciais dos EUA que usem recursos espaciais, relativo a interferências nocivas em operações ligadas ao uso de recursos de asteroides, os tribunais distritais dos EUA terão jurisdição exclusiva sobre ação vinculada ao uso de recursos espaciais, independente do montante do litígio, e o tribunal envolvido deve julgar em favor do demandante se entender que ele respeitou as obrigações internacionais do país e conduziu a atividade pela primeira vez, e também se entender que a atividade é razoável para a exploração e o uso dos recursos de asteroides. Tais normas comprovam o caráter inteiramente nacional da emenda, que não levam em conta os efeitos possíveis – sobre os outros países e suas empresas – das interferências nocivas produzidas no uso de recursos de asteroides.
Como se vê, a emenda em debate busca mudar a natureza e o sentido do Tratado do Espaço e do Direito Espacial em vigor, tentando ajustá-los aos interesses de corporações empenhadas em se tornarem proprietárias das riquezas dos corpos celestes, em especial dos asteroides.
É uma forma mais sofisticada de reproduzir as expedições colonizadoras de séculos atrás. Mas, desde meados do século XX, a partir da adoção da Carta das Nações Unidas em 1945, que criou um novo Direito Internacional, essas incursões se tornaram juridicamente insustentáveis.
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). Esse artigo expressa exclusivamente a opinião do autor.
Referências
(1) Frase citada por Ram Jakhu em seu artigo Legal Issues Relating to the Global Public Interest in Outer Space, Journal of Space Law, Vol. 32, 31-2006, p. 46. Origem: Treaty on Outer Space: Hearing Before the Comm on Foreign Relations, 90th Congress, 105-106 (1967).
(2) Casella, Paulo Borba, Direito Internacional dos Espaços, Editora Atlas, 2009, pp. 597-626. Para Casella, “a crescente exploração e utilização do espaço ultraterrestre, principalmente por operadores privados, requer racional utilização deste, de forma a resguardar os interesses de todos os Estados” (p. 626).
(3) Bosi, Alfredo, Economia e humanismo, Estudos Avançados 26 (75), 2012, pp. 249-266. Piketty, Thomas, O Capital no Século XXI, Ed. Intrínseca, 2014.
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