.
Espaço e desenvolvimento
José Monserrat Filho *
“Quando a capacidade criativa do homem se volta para a descoberta de suas potencialidades, e ele se empenha em enriquecer o universo que o gerou, produz-se o que chamamos desenvolvimento.” Celso Furtado¹
O Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, fundado no Rio de Janeiro em 2005, completa 10 anos. Sua missão é “enriquecer o debate sobre estratégias para o desenvolvimento – especialmente no caso do Brasil e da América Latina –, seguindo a linha de pensamento do seu patrono”². O economista Celso Furtado viveu 84 anos (1920-2004) e foi um dos mais importantes intelectuais brasileiros ao longo do século XX. Seu nome está indelevelmente ligado ao estudo do subdesenvolvimento e do desenvolvimento como fenômenos distintos em várias fases da história, inclusive e sobremodo na etapa atual da avassaladora globalização econômica.
“Garantir o desenvolvimento nacional” é um do “objetivos fundamentais da República, Federativa do Brasil” – reza a Constituição de 19883 –, junto com “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Esses objetivos funcionam como vasos comunicantes. A realização de um depende da dos demais. Celso Furtado participou dessa construção jurídica.
Nas primeiras décadas da Era Espacial, iniciada pelo Sputnik-1 em 4 de outubro de 1957, não se relacionava diretamente a exploração (estudo) e uso do espaço com o desenvolvimento nacional dos países, nem mesmo das potências pioneiras nas atividades espaciais. Enaltecia-se o avanço científico de modo genérico, como anunciavam à época os principais jornais do mundo.
O Tratado do Espaço de 19674, em pleno vigor, não fala em desenvolvimento, mas em seus Artigos I e II fixa três princípios fundamentais capazes de gerá-lo em escala mundial: o do bem comum (common good5), o da liberdade de acesso ao espaço e o da não-apropriação do espaço, da Lua e dos demais corpos celestes – entre os quais os asteroides hoje em destaque.
O princípio do bem comum está claramente exposto no § 1 do Artigo I:
“A exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem e interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade.”
O princípio da liberdade de acesso tem base nos § 2 e § 3 do mesmo Artigo I:
§ 2) “O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, poderá ser explorado e utilizado livremente por todos os Estados sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o direito internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes”; e
§ 3) “O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, estará aberto às pesquisas científicas, devendo os Estados facilitar e encorajar a cooperação internacional naquelas pesquisas.”
E o princípio da não-apropriação consta com absoluta clareza do Artigo II:
“O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio.”
Tais princípios básicos são intrinsecamente inter-relacionados e interdependentes. O bem comum é propiciado e estimulado pela liberdade de acesso para todos os países, que, por sua vez, é garantida pela total e completa não-apropriação do espaço e dos corpos celestes. O bem comum e a liberdade de acesso justificam a não-apropriação, que, por sua vez, permite e enseja o bem comum, assim como a liberdade de acesso para todos os países.
O bem comum inclui, claro, a busca do desenvolvimento econômico e social – nacional e geral (global) –, sobretudo do desenvolvimento sustentável, comprometida com metas altamente racionais e profundas, como beneficiar as gerações de hoje e amanhã.
O Acordo da Lua, de 19796 – debatido e aprovado no Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço (UNCOPUOS) e depois endossado por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas – refere-se ao desenvolvimento econômico e social, em seu Artigo 4º, § 1, que detalha o Artigo I, § 1, do Tratado do Espaço, a “Cláusula do Bem Comum”: “A exploração e o uso da Lua são incumbência de toda a humanidade e se realizam em benefício e no interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico ou científico. Especial atenção deve ser dada aos interesses das gerações presentes e futuras, bem como à necessidade de promover níveis de vida mais elevados e melhores condições de progresso e desenvolvimento econômico e social, em conformidade com a Carta da Organização das Nações Unidas.”
Cabe, pois, aos Estados, em suas atividades na Lua e nos demais corpos celestes (entre eles os asteroides), dar especial atenção aos interesses das gerações presentes e futuras, bem como à necessidade de promover níveis de vida mais elevados e melhores condições de progresso e desenvolvimento econômico e social, em linha com a Carta das Nações Unidas.
Essa visão ampla e abrangente do desenvolvimento econômico e social resultante das atividades espaciais é, mais que nunca, imprescindível no mundo atual, marcado pela concentração de riquezas e do poder financeiro em alguns países e suas corporações transnacionais – em número cada vez menor –, bem como pela crescente desigualdade entre as nações e entre as pessoas.
São oportunas aqui duas observações de Celso Furtado7, feitas em 1998:
1) “A esfera econômica tende a ser crescentemente dominada pelas empresas internacionais, as quais balizarão o espaço a ser ocupado por atividades de âmbito local e/ou informais. A importância relativa destas últimas definirá o grau de subdesenvolvimento de cada região: áreas desenvolvidas e subdesenvolvidas estarão assim estruturalmente imbricadas numa compartimentação do espaço político que cristaliza as desigualdades sociais.”
2) “A estrutura internacional de poder evolui para assumir a forma de grandes blocos de nações sedes de empresas transnacionais que dispõem de rico acervo de conhecimentos e pessoal capacitado. O intercâmbio internacional de serviços, particularmente os financeiros e tecnológicos, cresce em detrimento do de bens tradicionais. Na dinâmica desse sistema, prevalecem as forças tendentes a reproduzir a atual clivagem desenvolvimento/subdesenvolvimento.”
Exemplo inequívoco dessas forças, hoje, é a lei8 pleiteada por empresas americanas, aprovada pelo Congresso dos EUA e promulgada em 25 de novembro último pelo Presidente Obama, que confere o direito de propriedade aos cidadãos do país (e obviamente suas empresas) sobre os recursos de asteroides por eles (elas) obtidos no espaço, e estimula a exploração comercial dos recursos espaciais. Assim, uma questão global, que afeta a todos os países, é regulada de modo unilateral, para o bem e no interesse de um grupo nacional de empresas. Algo indefensável.
Também na área espacial, “quiçá o aspecto mais negativo da tutela das transnacionais sobre os sistemas de produção na periferia esteja na transformação dos quadros dirigentes em simples correias de transmissão de valores culturais gerados no exterior. O sistema dependente perde a faculdade de conceber os próprios fins”, como Celso Furtado escreveu, em 19789.
Neste contexto adverso à superação do subdesenvolvimento em qualquer área, o próprio Celso Furtado pergunta: “Como preservar a identidade cultural e a unidade política em um mundo dominado por grupos transnacionais que fundam seu poder no controle da tecnologia da informação e do capital financeiro?” E afirma: “É esse o desafio.”
Para superar o subdesenvolvimento no setor espacial, as dificuldades certamente são ainda maiores. O setor espacial de fato sempre foi – e hoje o é mais ainda – liderado por grandes potências e poderosas empresas transnacionais, sobretudo em vista da relevância geopolítico estratégico das atividades espaciais. Seus planos militares de defesa ou ataque – que na prática já no se distinguem – promovem impetuosos e contínuos avanços tecnológicos. É o que ocorre atualmente na chamada “nova Guerra Fria”, com armas mais modernas e certeiras que a anterior.
Como enfrentar o desafio de alcançar o desenvolvimento econômico e social em tal situação? Ainda sim, não é o caso de abandonar o jogo e isolar-se. Celso Furtado propõe a estratégia de “ganho de autonomia externa” para superar o subdesenvolvimento com “uma posição ofensiva nos mercados internacionais”, que tenha ao mesmo tempo “um efeito indutor interno”, como “motor da formação do mercado interno”. Claro, “o controle por empresas transnacionais das atividades produtivas com potencial de exportação, ao limitar a capacidade de ação na esfera internacional, pode criar obstáculos a esse tipo de estratégia”.
Por isso, “o problema que se coloca de imediato é o da identificação das bases sociais de uma estrutura de poder apta a levá-lo à prática”, com o “objetivo estratégico” de “assegurar um desenvolvimento que se traduza em enriquecimento da cultura em suas múltiplas dimensões e permita contribuir com criatividade própria para a civilização que se mundializa. No fundo está o desejo de preservar a própria identidade na aventura comum do processo civilizatório”.
O êxito dessa estratégia “pressupõe, evidentemente, o exercício de forte vontade política apoiada em amplo consenso social”10, hoje inexistente, mas que provavelmente logo poderá ressurgir ante a persistência da crise com o aumento vertiginoso da globalização da desigualdade. E “o desenvolvimento, gerado endogenamente, requer criatividade no plano político, e esta se manifesta quando à percepção dos obstáculos adiciona-se forte ingrediente de vontade coletiva”, pois “somente uma liderança política criativa será capaz de conduzir as forças criativas para a reconstrução de estruturas avariadas e para a conquista de novos avanços na direção de formas superiores de convivência social”¹¹.
O Brasil já tem decisões internas positivas. O Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE – 2012-2021)12, elaborado pela Agência Espacial Brasileira e aprovado por seu Conselho Superior – onde estão representados os principais ministérios – proclama: “Prioridade maior: impulsar o avanço industrial”. E justifica: “O Brasil tem especial vocação espacial. Com mais de 8,5 milhões de km² de extensão territorial, deve cuidar, ao todo, de 13 milhões de km², incluídos os 4,5 milhões de km² de território marítimo. É um patrimônio rico em recursos naturais de toda ordem, que precisa ser cada vez mais conhecido, estudado, controlado, administrado, explorado e vigiado da melhor forma possível. A ciência e a tecnologia espaciais são vitais para isso. A indústria tem papel histórico a cumprir.” E mais: “Eis um grande apelo à inventividade e ao empreendedorismo” para tornar o país “capaz de usufruir, soberanamente e em grande escala, dos benefícios das tecnologias, da inovação, da indústria e das aplicações do setor em prol da sociedade brasileira”. Entre as diretrizes estratégicas do PNAE estão: Consolidar a indústria espacial, aumentando sua competitividade e elevando sua capacidade de inovação, inclusive por meio do uso do poder de compra do Estado, e de parcerias com outros países; Desenvolver intenso programa de tecnologias críticas, incentivando a capacitação no setor com maior participação da academia, das instituições governamentais de C&T e da indústria; Ampliar parcerias com outros países, priorizando o desenvolvimento conjunto de projetos tecnológicos e industriais de interesse mútuo (que, no mínimo, propiciem absorção tecnológica ao Brasil); Fomentar a formação e capacitação de especialistas para setor espacial, no país e no exterior; Promover a conscientização da opinião pública sobre a relevância do estudo, do uso e do desenvolvimento do setor espacial.
Como superar os impasses de hoje sem levar em conta estas ideias?
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). Esse artigo expressa apenas a opinião do autor.
Referências
1) Furtado, Celso, O Capitalismo Global, Paz e Terra, 1998, p. 47.
2) Ver www.centrocelsofurtado.org.br/
3) Ver www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm
4) Ver http://www.sbda.org.br/textos/textos.htm
5) Bens Públicos Globais – Cooperação Internacional no Século XXI, editado por Inge Kaul, Isabelle Grunberg and Marc A. Stern, Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP), Rio de Janeiro, Ediora Record, 2012. (Publicado pela Oxford University Press em 1999.)
6) Ver http://www.sbda.org.br/textos/textos.htm.
7) Furtado, Celso, Id Ibid, pp. 37-39.
8) Ver https://mail.google.com/mail/ca/u/0/#inbox/1514e6de7fedb6fa?projector=1
9) Furtado, Celso, Criatividade e dependência na civilização industrial, 1ª edição, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1978; edição Companhia das Letras, São Paulo, 2008, p. 162.
10) Furtado, Celso, Id Ibid, pp. 5354.
11) Furtado, Celso, Em busca de novo modelo, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, pp.32-33.
12) Ver http://www.aeb.gov.br/wp-content/uploads/2013/01/PNAE-Portugues.pdf
.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário