segunda-feira, 16 de novembro de 2015

"EUA: Senado aprova projeto de lei nacional para minerar asteroides", artigo de José Monserrat Filho

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EUA: Senado aprova projeto de lei nacional para minerar asteroides

José Monserrat Filho *

“Estas questões não podem ser resolvidas por estados individuais, mas devem ser enfrentadas de forma coletiva.” Antonio Cassese, em “Realizing Utopia – The Future of International Law”, 2012

Grandes corporações privadas americanas soltam foguetes. Em 10 de novembro último, o Senado dos Estados Unidos (EUA) aprovou projeto de lei que confere às empresas do país o direito de propriedade sobre os recursos naturais (minerais) por elas obtidos em asteroides. É a Lei de Competitividade de Lançamento Espacial Comercial (U.S. Commercial Space Launch Competitiveness Act – CSLCA ou H.R. 2262, resultante de fusão dos projetos da Câmara e do próprio Senado). O novo projeto volta agora à Câmara. Se aprovado aí, vai à sanção presidencial.

O projeto reza em seu §51303 sobre “Asteroid resource and space resource rights” (recursos de asteroides e recursos espaciais): ‘‘A United States citizen engaged in commercial re-covery of an asteroid resource or a space resource under this chapter shall be entitled to any asteroid resource or space resource obtained, including to possess, own, transport, use, and sell the asteroid resource or space resource obtained in accordance with applicable law, including the international obligations of the United States.’’ Ou seja, em tradução livre: “Um cidadão dos EUA envolvido na recuperação comercial de um recurso de asteroide ou um recurso espacial sob este capítulo terá direito a qualquer recurso de asteroide ou recurso espacial obtido, incluindo a possuir, apropriar-se, transportar, usar e vender o recurso de asteroide ou o recurso espacial obtido em conformidade com a legislação aplicável, incluindo as obrigações internacionais dos EUA.''

Na realidade, não se trata de “recuperação comercial de um recurso de asteroide” – mero eufemismo –, mas de extração em escala industrial, para ser transportado e comercializado na Terra.

O novo projeto faz questão de frisar que não está estabelecendo o direito de propriedade sobre o terreno do asteroide no qual os recursos naturais foram obtidos, ou seja, extraídos. Isso significa uma tentativa de reconhecimento da obrigação assumida pelos EUA ao ratificar o Tratado do Espaço, cujo Artigo II determina que “o espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio”.

O artifício jurídico imaginado para fundamentar a propriedade sobre os recursos naturais de um asteroide, sem a propriedade sobre seu respectivo local, é de que, no passado, sondas e astronáutas enviados à Lua puderam recolher amostras de rochas lunares e trazê-las para a Terra. Os astronautas norte-americanos que pisaram na Lua entre 1969 e 1972, por exemplo, transportaram de lá 382 kg de pedras e amostras do solo lunar.

Na interpretação dos parlamentares norte-americanos, a coleta de amostras e seu transporte para o nosso planeta pode ser considerada um precedente que estabelece o direito de propriedade sobre os recursos recolhidos na Lua e em outros corpos celestes, como os asteroides. Essa interpretação pensada para favorecer os interesses e os negócios de empresas privadas, naturalmente não leva em conta o fato de que as amostras coletadas por sondas e astronautas não tinham fins comerciais, mas exclusivamente científicos. Ainda hoje as rochas trazidas da Lua são estudadas em centros de pesquisa e unversidades dos EUA e de outros países. Não se pode igualar nem  confundir objetos para estudo com bens para o comércio. São coisas totalmente diferentes.

Não por acaso, o Acordo que Regula as Atividades dos Estados na Lua e em Outros Corpos Celestes, de 1979, conhecido como o Acordo da Lua (Moon Agreement), refere-se a três tipos de atividades espaciais: exploração, uso e explotação.

Exploração é a ação de estudar, pesquisar, conhecer cientificamente a Lua e os corpos celestes. Em linha com isso, o Artigo 6º do Acordo reza, no parágrafo 1, que “todos os Estados têm liberdade de pesquisa científica na Lua” e, no parágrafo 2, que “ao realizarem pesquisas científicas em conformidade com as cláusulas deste Acordo, os Estados-Partes têm o direito de recolher e retirar da Lua amostras de elementos minerais e outros”. O Artigo 6º diz também que tais amostras devem permanecer à disposição de outros Estados-Partes interessados e da comunidade científica internacional para o trabalho de pesquisa.

Usar é a ação de valer-se dos recursos naturais da Lua e de outros corpos celestes para assegurar a manutenção das missões exploratórias. O Artigo 6º afirma, a propósito, que “durante suas pesquisas científicas, os Estados-Partes podem também utilizar minerais e outras substâncias da Lua na quantidade necessária para dar apoio a suas missões”. É exatamente essa utilização claramente destinada e limitada que está sendo agora aproveitada para justificar o uso de recursos naturais dos asteroides como propriedade com fins industriais e comerciais. É uma interpretação forçadamente alargada e legalmente insustentável.

Explotar – ação enunciada pela primeira vez no parágrafo 5 do Artigo 11 do Acordo da Lua – é o aproveitamento dos recursos naturais da Lua e dos outros corpos celestes, inclusive asteroides, para fins comerciais, ou seja, em empreendimentos privados vinculados à busca de lucros. No parágrafo 5 do mesmo Artigo 11, propõe-se o estabelecimento de “um regime internacional, inclusive os procedimentos adequados, para regulamentar a explotação dos recursos naturais da Lua, quando a explotação estiver a ponto de se tornar possível”.

Segundo o parágrafo 7 do Artigo 11, os principais objetivos do regime internacional são:

“a) aproveitamento ordenado e seguro dos recursos naturais da Lua [e dos outros corpos celestes];

b) ordenamento racional destes recursos;

c) ampliação das possibilidades de utilização destes recursos; e

d) distribuição equitativa entre todos os Estados-Partes dos benefícios auferidos destes recursos, com especial consideração para os interesses e necessidades dos países em desenvolvimento, bem como para os esforços daqueles Estados que contribuíram, direta ou indiretamente, na exploração da Lua.”

O Acordo da Lua entrou em vigor em 1974, depois de ter sido ratificado por cinco países. Hoje, ele tem 16 ratificações e quatro assinaturas. É verdade que nenhuma das grandes potenciais espaciais o ratificou. Há países, como os EUA, que não o colocam entre os cinco grandes tratados espaciais elaborados e aprovados no âmbito das Nações Unidas. Esses países costumam falar em “quatro tratados principais”, excluindo o Acordo da Lua. No entanto, há que lembrar que o Acordo da Lua não é apenas um instrumento legitimamente em vigor, como também foi aprovado por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas, ao ser lançado em 1979.

Essa aprovação evidencia, pelo menos, que os conceitos de exploração, utilização e explotação, ora em debate, foram aceitos naquela oportunidade.

O projeto de lei recentemente aprovado pelo Senado dos EUA não pode simplesmente sepultar a história, ou ignorá-la como se ela não tivesse existido.

Mas o mais comprometedor de tudo é tratar-se de uma decisão unilateral destinada a impor uma lei nacional para regulamentar uma questão obviamente global, de interesse para todas as nações. O projeto pode até proclamar que a explotação privada dos recursos naturais do espaço irá  beneficiar toda a humanidade. Mas, com base na experiência histórica, que garantia se pode ter  disso?

* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica, ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). 
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