quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

"Acesso autônomo ao espaço - onde o Brasil quer chegar"



Acesso autônomo ao espaço - Onde o Brasil quer chegar

André M. Mileski

Das chamadas potências emergentes, conhecidas pela sigla BRIC, criada em 2003 pelo economista Jim O’Neill, do banco de investimentos norte-americano Goldman Sachs, o Brasil é, atualmente, o único país a não contar com acesso autônomo ao espaço. A Rússia, pioneira, então União Soviética, alcançou este feito em 1957. A China, em 1970, e a Índia, em 1980. Hoje, estes países não só atendem suas demandas internas, como comercializam serviços de lançamento no mercado internacional e mesmo detêm capacidade madura ou em processo de desenvolvimento para missões espaciais tripuladas.

Muito embora o Brasil ainda não possa fazer isso, o interesse em contar com acesso autônomo, no entanto, não é uma novidade. Desde 1979, com a criação da Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), com iniciativas nas áreas de satélites, infraestrutura terrestre e lançadores, o País vem buscando este acesso, por meio do programa do Veículo Lançador de Satélites, o VLS-1. A partir de 1994, com a criação da Agência Espacial Brasileira (AEB) e do Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE), atualizado de tempos em tempos, o segmento de lançadores sempre constou dos planos espaciais nacionais.

Em 2005, o Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), vinculado ao Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA), do Comando da Aeronáutica, lançou o Programa Cruzeiro do Sul que, num horizonte de 17 anos, visava desenvolver uma família de lançadores de satélites apta a atender as necessidades do seu programa espacial e algumas missões internacionais. Assim, previa-se o desenvolvimento de cinco lançadores de classes distintas (ver box).

Dentro do programa espacial, o Cruzeiro do Sul é visto como conceitual e serve como diretrizes para iniciativas em desenvolvimento ou discussão. Propostas para o desenvolvimento dos VLS-Alfa e Beta, possivelmente em regime de cooperação internacional, foram apresentadas à AEB e estão em análise, estando os conceitos do VLS-Gama, VLS-Delta e VLS-Epsilon em rediscussão, uma vez que apresentam baixa demanda (caso do Gama e Epsilon) ou concorrem com outras iniciativas nacionais (Delta).

Programa Cruzeiro do Sul:

- VLS-Alfa, concebido para atender o segmento de cargas úteis na faixa de 200-400 kg destinados a órbitas equatoriais baixas

- VLS-Beta, capaz de atender missões de até 800 kg para órbita equatorial a 800 km de altitude

- VLS-Gama, destinado a missões de cargas úteis de cerca de 1.000 kg em órbitas heliossíncronas e polares

- VLS-Delta, focado em missões geoestacionárias, com capacidade de colocação de cargas de cerca de 2.000 kg em órbitas de transferência geoestacionária; e

- VLS-Epsilon, para cargas úteis geoestacionárias de maior porte, de cerca de 4.000 kg

Novos impulsos

A edição da Estratégia Nacional de Defesa, em dezembro de 2008, apontou o setor espacial, ao lado do nuclear e cibernético, como um dos seus pilares decisivos. O documento, que serve como diretriz para todo o processo de transformação e atualização das Forças Armadas, indica a necessidade “do desenvolvimento de veículos lançadores de satélites e sistemas de solo para garantir acesso ao espaço em órbitas baixa e geoestacionária”, em processo coordenado pela AEB, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Desde então, iniciativas já em andamento, como o programa VLS, a parceria com a Ucrânia na Alcântara Cyclone Space, e outras novas, como o Veículo Lançador de Microssatélites (VLM) e propostas de cooperação em lançadores de maior porte passaram a ter um maior destaque nos planos do governo.

O VLS

Ao longo de mais de 40 anos, em meio a severas restrições orçamentárias e embargos internacionais, foram três tentativas de lançamento do VLS; em 1997, 1999 e 2003, todas mal sucedidas. Com a tragédia de 2003, que vitimou 21 especialistas do IAE, o programa sofreu um duro golpe, resultando em atraso de vários anos. Apesar do golpe, o projeto continuou e passou por uma revisão crítica que contou, inclusive, com a participação de técnicos da Rússia.

Recentemente, com uma retomada mais clara do Programa Espacial Brasileiro, caracterizada principalmente pela destinação de mais recursos orçamentários, passou a haver mais destaque, com cronogramas claros de retomada. Ensaios de diversos subsistemas do lançador, contratados junto à indústria nacional, são frequentemente realizados nas instalações do IAE em São José dos Campos (SP). Hoje, planeja-se a realização de duas missões tecnológicas, denominadas XVT-1 (VSISNAV) e XVT-2, e uma do lançador completo, com todos os seus estágios, a VO4. O primeiro voo, previsto para ocorrer em 2013, seria constituído de um foguete com o primeiro e segundo estágios ativos, ocasião em que também se pretende testar o sistema de navegação SISNAV. Espera-se que um segundo voo, mais completo, ocorra no ano seguinte, o que depende do repasse de recursos financeiros pela AEB, segundo revelou à T&D o brigadeiro Carlos Kasemodel, diretor do IAE, em entrevista concedida no final de julho.

Em junho e julho de 2012, foi realizada no Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão, a Operação Salina, período de 26 dias em que foram ensaiados e simulados diversos sistemas da Torre Móvel de Integração (TMI), concluída no final de 2011, visando a verificação da integração física, elétrica e lógica do VLS-1 com a nova torre.

Pouco conhecida para o público em geral, a cooperação entre a agência espacial da Alemanha (DLR) e o IAE completou quatro décadas. Marcada por muitos sucessos e missões conjuntas envolvendo foguetes de sondagem, a atuação dos dois países deve alcançar um novo marco com o Veículo Lançador de Microssatélites (VLM-1), que entrou em fase de projeto em 2012, após um período de estudos de concepção.

Apesar de ser um veículo orbital, a primeira missão prevista para o VLM-1 não será de satelitização, mas sim a realização do experimento SHEFEX 3 (Sharp Edge Flight Experiment), que objetiva testar o comportamento de novos materiais e proteção térmica necessários para se dominar a tecnologia de voos hipersônicos e de veículos lançadores reutilizáveis, previsto para 2015 ou 2016. Além da participação de 25% nos custos de desenvolvimento, estimados em R$100 milhões, os alemães estão envolvidos em áreas como engenharia de sistemas, sistemas de controle e atuadores.

Em sua configuração inicial, o VLM-1 será um foguete de três estágios de propelentes sólidos, sendo os dois primeiros com o motor S50, o maior já desenvolvido e a ser construído no Brasil até hoje; e, o último, o propulsor S44, já qualificado em voo pelo foguete de sondagem VS-40. O S50, que tem 1,45 metro de diâmetro, 5 metros de comprimento e cerca de 12 toneladas de propelente, está sendo desenvolvido pelo IAE, em parceria com os alemães.

O VLM-1 terá capacidade de lançar cargas úteis de até 200 kg em órbita equatorial a 300 km de altitude, ou 180 kg para órbitas inclinadas, em missões científica, tecnológicas ou de observação terrestre. Em sua concepção, baseada no equilíbrio entre confiabilidade e custo, trabalha-se com o objetivo de se criar diferentes versões, mantendo-se os dois primeiros estágios e modificando o terceiro. Dessa forma, com um motor mais potente no terceiro estágio, sua performance poderia ser aprimorada, tornando-o apto a lançar satélites de até 350 kg a 300 km de altitude, em órbita equatorial, ou 150 kg com inclinação de 98 graus a uma altitude de 600 km. Nos planos do IAE, também é considerada a criação de uma versão com um último estágio de propulsão líquida, o que possibilitaria uma maior precisão para a inserção de satélites em órbita, em razão da possibilidade de reignições durante o voo. Esta versão, aliás, é vista como crucial para atender um dos objetivos do projeto, que seria o de atender a um nicho pouco explorado no mercado de lançamentos.

Outro aspecto que deve ser atendido é o de política industrial. Nos últimos anos, o IAE tem dedicado especial atenção à transferência de projetos para o setor industrial espacial, e com o VLM-1 não deve ser diferente. A participação ocorre desde a concepção, passando pelo desenvolvimento e culminando na produção. De fato, a CENIC, de São José dos Campos, já atua no projeto do envelope-motor S50, feito em fibra de carbono, e há expectativa de que o Instituto contrate no futuro outras empresas para atuar no carregamento de propelente e redes elétricas, dentre outros subsistemas.

Propulsão líquida

Paralelamente ao VLS e VLM-1, o IAE também promove iniciativas num domínio considerado essencial para a autonomia brasileira em veículos lançadores: propulsão líquida, bastante apreciada por possibilitar colocações mais precisas de cargas úteis em órbita. Alguns projetos de motores-foguetes líquidos estão em desenvolvimento pelo IAE, como o L5, L15 e L75, de diferentes portes.

O L75, o maior deles, busca o modelo de engenharia de um motor foguete a propelente líquido, usando o par propelente oxigênio líquido e querosene, pressurizados por turbo bomba, capaz de gerar 75 KN de empuxo no vácuo. É destinado a veículos lançadores de satélites, uma vez que seu controle do empuxo e do tempo de queima possibilita a colocação em órbita de satélites com precisão. Ao longo de 2012, vários projetos relacionados ao L75 avançaram, como o seu plano mecânico detalhado, fabricação, plano mecânico dos modelos de engenharia e elaboração dos procedimentos de montagem, inspeção e teste. Para os próximos anos, as etapas serão o desenvolvimento da câmara de combustão, do turbo bomba e das válvulas reguladoras, e a construção de novo banco de testes para ensaios das bombas.

Além dos motores propriamente ditos, o IAE também desenvolve, em conjunto com a Orbital Engenharia, o Sistema de Alimentação Motor-Foguete (SAMF), que teve alguns protótipos construídos e encontram-se em ensaios de qualificação nas instalações do IAE. A finalização do SAMF é tida como essencial para a realização de testes em voo de propulsores líquidos, pois controla a alimentação do motor foguete a propelente líquido, alimentando-o com propelente nas pressões e vazões necessárias para o seu correto funcionamento.

ACS

As iniciativas brasileiras em matéria de acesso ao espaço não se restringem apenas a projetos de desenvolvimento tecnológico. A Alcântara Cyclone Space (ACS), uma binacional constituída pelos governos do Brasil e da Ucrânia, tem planos de operar o lançador ucraniano Cyclone 4 a partir do CLA, com objetivos inicialmente comerciais, mas que hoje também apontam para um caráter mais estratégico, buscando atender algumas necessidades do Programa Espacial Brasileiro.

A cooperação espacial entre o Brasil e a Ucrânia em serviços de lançamento tem origens no final da década de 1990. Mas, apenas em 2003, com a assinatura do Tratado sobre Cooperação de Longo Prazo na Utilização do Veículo de Lançamento Cyclone 4 no CLA, se tornou mais concreta. Três anos depois, foi criada a ACS com a finalidade de viabilizar o projeto, administrar o complexo de lançamento e explorá-lo comercialmente. Desde então, centenas de milhões de reais oriundos dos países sócios foram investidos, com obras de toda a infraestrutura terrestre no CLA, assim como o desenvolvimento do lançador na Ucrânia, em andamento.

Num primeiro momento, o acordo que deu origem à ACS não tem caráter de transferência de tecnologia, mesmo que, ao menos do lado ucraniano, pareça haver disposição para a ampliação do escopo da cooperação para isso. Apesar de não haver envolvimento brasileiro no Cyclone 4, capaz de colocar cargas úteis de até 5.500 kg em órbita baixa a 700 km de altitude e 1.700 kg em órbita de transferência geoestacionária, este engenho teve algum impacto nos planos nacionais de lançadores. Hoje, não se considera o desenvolvimento do VLS-Delta, dentro do programa conceitual Cruzeiro do Sul, por se enquadrar na mesma classe que o foguete ucraniano.

Mais parcerias?

Entendido o caráter estratégico de ter acesso autônomo ao espaço, o governo brasileiro tem analisado com mais atenção iniciativas nesse campo, provavelmente em regime de cooperação internacional, de forma similar ao VLM-1, com a Alemanha, para atender as outras lacunas consideradas dentro do Cruzeiro do Sul, em particular os VLS Alfa e VLS Beta. Várias propostas já chegaram às mesas de muitos gabinetes, de São José dos Campos a Brasília (DF).

Na visita oficial da comitiva brasileira liderada pela presidente Dilma Rousseff à França, em 11 de dezembro de 2012, um dos tópicos em Ciência, Tecnologia e Inovação citados na declaração conjunta com o seu contraparte francês foi a possibilidade de se estender a cooperação espacial entre os dois países para “lançadores de satélites”, tema que deve ser discutido entre a AEB e a Agência Espacial Francesa (CNES), no início de 2013. Nos bastidores, são conhecidos os esforços franceses em ampliar a parceria estratégica no campo de defesa, particularmente em submarinos e helicópteros, com ampla transferência tecnológica, para a área espacial, especialmente satélites de comunicações, sensoriamento remoto e lançadores.

Outro interessado é a Itália, que desde 2011 tem feito propostas por meio da Agência Espacial Italiana (ASI) e da empresa Avio, principal desenvolvedora do Vega, o mais importante passo dado por este país europeu na área de lançadores. Trata-se de um foguete de quatro estágios (os três primeiros de combustível sólido e o último líquido), com capacidade de inserir cargas úteis de até 1.500 kg em órbitas circulares a 700 km de altitude. Seu desenvolvimento tem como prime contractor a ELV (European Launch Vehicle), joint-venture da ASI com a Avio. O primeiro voo foi realizado com sucesso no início de 2012.

Os italianos propuseram um lançador com todos os estágios de combustível sólido, com capacidade de satelitização de 1.500 kg a uma altitude de 1.500 km, baseado na tecnologia do Vega. De acordo com o divulgado, o custo seria inferior a R$1 bilhão, e seria realizado por meio da formação de uma joint-venture com empresas nacionais, num modelo similar ao apresentado pelos franceses.

Há alguns anos, a Rússia era vista como parceira preferencial do Brasil em matéria de lançadores, especialmente por sua disposição em colaborar e fornecer itens críticos, como os sistemas inerciais dos primeiros protótipos do VLS-1. Grande parte do conhecimento adquirido pelo IAE na área de propulsão líquida o foi através de parcerias com institutos e centros de pesquisa russos, que treinaram e capacitaram dezenas de especialistas brasileiros. Em posição hoje mais enfraquecida, em razão da ampliação do leque de possibilidades em cooperação no campo de foguetes e por uma difícil negociação para a transferência tecnologia, a madura indústria espacial russa continua interessada em ampliar os acordos com o Brasil e é vista como opção.

Fonte: revista Tecnologia & Defesa nº 131, dezembro de 2012.
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3 comentários:

Raul_m disse...

Excelente matéria, André Mileski! Bastante esclarecedora!

Raul_m disse...

Excelente matéria, André Mileski! Bastante esclarecedora!

Unknown disse...

Em visita ao Brasil o presidente russo, segundo a Rianovost OFERECEU ao Brasil cooperação para a modernização dos nossos
lançadores.