Sinais de guerra fria no ar
José Monserrat Filho *
A 2ª Conferência Científica de Kepler será realizada no Centro de Pesquisa Ames da NASA, na Califórnia, EUA, de 4 a 8 de novembro próximo. Vai discutir temas atuais da astronomia: estatísticas dos exoplanetas; planetas análogos à Terra, planetas ligados a sistemas estelares múltiplos; zonas habitáveis; caracterização de trânsitos planetários; atividade estelar, rotação, idades e metalicidade; estrelas binárias eclipsantes e binárias em interação; futuros telescópios e instrumentação para pesquisas de exoplanetas; sismologia estelar; astrofísica galáctica e extra galáctica. Para saber mais, visite o site
O Centro Ames, sediado na Califórnia, foi fundado em 1939 como centro de pesquisas aeronáuticas, certamente devido à importância que a aviação começava a ter na época e à II Guerra Mundial que logo eclodiria. Após a criação da NASA em 1958, passou a pesquisar novas tecnologias destinadas a viabilizar suas missões. Essas tecnologias incluiam biologia espacial, nanotecnologia, biotecnologia, sistemas de proteção a calor para naves espaciais, tecnologia da informação e astrobiologia – áreas essenciais à corrida espacial que se iniciava.
De lá para cá, a astronomia, com base na cooperação e no trabalho conjunto de equipes internacionais, deu um salto sem precedentes. Hoje, astrônomos de inúmeros países exploram juntos o espaço profundo, com descobertas cada vez mais fantásticas. As Conferências Kepler se inserem nesse novo tempo de conquistas e avanços impressionantes.
Isso significa que todos os astrônomos do mundo têm acesso à 2ª Conferência Kepler, certo? Lamentavelmente, não. Os chineses não poderão participar do evento.
Segundo a France Press, a decisão teria sido tomada com base na lei federal dos EUA, sancionada em 2011, que não permite o emprego de recursos financeiros da NASA em ações bilaterais com a China ou empresas chinesas, ou para receber visitantes chineses em instalações pertencentes ou utilizadas pela NASA.
Na Câmara de Representantes, o congressista Frank Wolf, presidente do Subcomitê do Comércio, Justiça, Ciência e suas agências, tentou melhorar a situação. Explicou que a restrição criada pela lei de 2011 é bilateral e não multilateral. Ou seja, não veda a participação individual de cidadãos chineses, a menos que representem o seu governo – o que não é o caso.
Ocorre que o administrador da NASA, Charles Bolden, declarou ao depor na mencionada subcomissão, em 20 de março passado, que adotou uma moratória no financiamento a qualquer acesso a instalações da NASA de indivíduos de um grupo especial de países, nomeadamente China, Birmânia, Eritreia, Irã, Coreia do Norte, Arábia Saudita, Sudão e Usbequistão. A China foi igualada à Coreia do Norte, à Eritreia e ao Sudão. Por que um gesto tão exagerado e inamistoso?
Mas a porta-voz da Chancelaria chinesa não emitiu nenhum protesto. Apenas definiu o veto aos chineses como “ação discriminatória” que “tem encontrado oposição nos EUA”. E acrescentou, diplomaticamente: “Pensamos que eventos acadêmicos não deveriam ser politizados”.
Nos EUA, de fato, houve reações duras. Alan Boss, do Instituto Carnegie para a Ciência, com sede em Washington, e co-presidente da 2ª Conferência Kepler, afirmou em nota: “Nós consideramos deploráveis as consequências dessa lei e nos opomos fortemente à proibição contra nossos colegas chineses, ou de qualquer outro país. Estamos buscando outras opções, que permitam a participação de todos os cientistas interessados, pessoal ou remotamente.”
A revista inglesa “The Economist”, de 12 de outubro, relata: “Indignados, muitos astrônomos americanos proeminentes – inclusive Geoff Marcy, da Universidade da Califórnia, Berkeley, EUA, um dos pioneiros da pesquisa sobre exoplanetas, e Debra Fisher, da Universidade de Yale, EUA, que ajudou a descobrir o primeiro sistema com mais de um planeta, fora do sistema solar – anunciaram que vão boicotar a conferência, em sinal de protesto”.
“The Economist” disse ainda que, se o veto aos chineses se deve ao medo de espionagem, “é difícil imaginar quais segredos os supostos espiões seriam capazes de roubar em uma conferência dedicada a planetas alienígenas. Serão discutidos dados coletados pelo telescópio espacial Kepler, da NASA, já disponíveis gratuitamente para quem quiser, chinês ou seja lá quem for”.
Como resolver, com tranquilidade, essa crise difícil de explicar? Chris Lintott, astrônomo da Universidade de Oxford, EUA, sugere transferir a conferência para um local neutro, fora da NASA. Mas, faltando tão pouco tempo para o evento, a mudança parece inviável.
Pena, pois, como prevê “The Economist”, “se os chineses estiverem ausentes e se, de fato, alguns dos luminares da área ficarem de fora, o clima será pesado”. Tipo clima de guerra fria.
Numa época de tantos e tão graves desafios globais, inclusive para assegurar a sustentabilidade a longo prazo das atividades espaciais indispensáveis à evolução humana, essa atmosfera não pode, em sã consciência, interessar nem a americanos, nem a chineses, cujas responsabilidades, hoje, vão além das de muitos outros povos.
Aliás, ela não pode interessar a ninguém.
* Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB), Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial e Membro pleno da Academia Internacional de Aeronáutica.
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Um comentário:
Monserrat
Ótimo ponto, mas gostei mais da ênfase do Alan Boss, "lamentável proibir cientistas chineses ou de qualquer país do planeta".
Não entendo muito que o discriminado possa se ofender por estar junto de outros discriminados.
"A China foi igualada à Coreia do Norte, à Eritreia e ao Sudão. Por que um gesto tão exagerado e inamistoso"?
Não tenho a menor ideia quantos astrônomos existem hoje no Sudão e na Eritreia, improvável que algum interessado em participar da conferência Kepler, mas vale lembrar que como parte do Egito antigo fazem parte da história da Astronomia.
Tomara que os chineses, ou de qualquer país, com os requisitos necessários possam participar.
Abraços
Décio
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