domingo, 29 de janeiro de 2012

Pode um país colonizar a Lua?, artigo de José Monserrat Filho

.
Pode um país colonizar a Lua?

José Monserrat Filho, Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB)

Acaba de revelar-se que há algo em comum entre os anos de 1865 e 2012. Em ambos, proclamou-se nos Estados Unidos (EUA) um voluntarioso plano para se estabelecer um Estado americano no satélite natural da Terra, a Lua, situada bem perto de nós, a cerca de 380 mil km.

Em 1865, o escritor francês Júlio Verne (1828-1905), aclamado como visionário e precursor da ficção científica, lançou o livro “De la Terre à la Lune” (Da Terra à Lua¹), narrando a irônica história do “Clube do Canhão”, com sede em Baltimore, Estado de Maryland, EUA. Fora criado ao longo da Guerra de Secessão (entre o Norte liberal e o Sul escravagista) por veteranos oficiais heróis da Artilharia. Mas deixemos o próprio Júlio Verne contar:

“Muitos ficaram no campo de batalha, e seus nomes constavam no livro de honra do Clube do Canhão. Dos que voltaram, quase todos traziam a marca da indiscutível bravura. Muletas, pernas de pau, braços articulados, mãos de gancho, maxilares de borracha, cabeças com pedaços de prata, narizes de platina, nada faltava à coleção. E o já citado Pitcairn [perito em estatística] também calculou que no Clube do Canhão não havia um braço para quatro pessoas e somente uma perna para cada seis.

“Mas os valentes artilheiros não se importavam com isso e ficavam orgulhosos quando o boletim da guerra destacava que o número de vítimas havia sido dez vezes maior do que a quantidade de projéteis atirados.

“Um dia, porém, triste e lamentável dia, a paz foi assinada pelos sobreviventes da guerra, as detonações foram cessando aos poucos, os morteiros se calaram, os obuses receberam uma mordaça, os canhões voltaram para os arsenais, as balas foram empilhadas, as lembranças sangrentas se apagaram, os magníficos algodoeiros começaram crescer nos campos adubados, as roupas de luto foram eliminadas juntamente com a dor da perda, e o Clube do Canhão mergulhou numa inatividade profunda. (…)

“– É desolador – suspirou uma noite o bravo Tom Hunter, enquanto suas pernas de pau queimavam na lareira.

“– E não existe nenhuma perspectiva de guerra! – disse o famoso J. T. Maston [inventor de um “extraordinário morteiro”], coçando a cabeça com mão de gancho.”

Diante de tamanho descalabro, em que “pairava sobre o clube a ameaça de dissolução”, o Presidente Impey Barbicane, “um homem de 40 anos, calmo, frio, austero e de temperamento inquebrantável”, “nortista colonizador... um ianque dos pés à cabeça”, convocou as centenas de associados e disse a eles ter pesquisado se “dentro da nossa especialidade, não poderíamos realizar uma grande experiência digna do século XIX”. “E, com meus estudos, adquiri a convicção de que teremos sucesso numa operação que pode parecer impraticável a qualquer outro país... Esse projeto é digno de vocês, é digno do Clube do Canhão e terá repercussão mundial.” E anunciou: “Conquistaremos a Lua, que se juntará aos Estados que formam o nosso grande país!”

O projeto consistia em construir nada menos que um gigantesco canhão (de 68 mil ton), o maior de todos os tempos, para lançar três corajosos “viajantes” à Lua.

Não revelarei como terminou a insólita experiência, para não furtar do leitor a prazer de ler até o fim o famoso livro de Júlio Verne.

Desta alegórica e divertida ficção do século XIX, passemos, num salto de 147 anos, a uma não menos alegórica e divertida realidade do século XXI.

No final deste janeiro de 2012, Newt Gingrich, pré-candidato republicano a presidente dos EUA, em plena campanha, não só prometeu criar até 2020 uma base dos EUA na Lua, como, em especial, previu que “quando houver 13 mil americanos vivendo na Lua, eles poderão fazer uma petição para que [o assentamento] vire um Estado americano”.²

Em 1865, a hipótese de os EUA fundarem um Estado na Lua até poderia ser política e legalmente admissível, embora não houvesse a mais ínfima possibilidade tecnológica e financeira para tanto.

Já em 2012, – há mais de 40 anos, portanto, daquele inesquecível dia 19 de junho de 1969 quando os primeiros astronautas americanos pisaram na Lua – é bastante constrangedor para um homem público, sobretudo americano, ignorar o Tratado do Espaço3, de 1967, que proíbe os países de se adonarem do espaço exterior e de qualquer corpo celeste, a começar pela Lua. Esse acordo foi aprovado por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas e já ratificado por mais de 100 países envolvidos com programas espaciais, inclusive os EUA.

Eis o texto oficial do Art. 2º do Tratado do Espaço: “O Espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio.”

Diante deste princípio jurídico internacional obrigatório, como acreditar que um grupo de cidadãos de um país – por mais numeroso que seja – possa ser considerado como legalmente competente para sequer solicitar a transformação de seu assentamento lunar em Estado ou Província de seu Estado de origem?

O pré-candidato republicano Newt Gingrich parece não saber ou prefere desprezar o princípio hoje reconhecido universalmente de que o espaço cósmico e os corpos celestes (Lua, Marte e todos os outros) não podem pertencer a nenhum país e a ninguém – são o que já o Direito Latino considerava “Res communis omnium”, ou seja, coisas de uso comum, acessível a todos.

É claro que todos os países, inclusive os EUA, podem estabelecer um assentamento na Lua, segundo o Art. 1º do Tratado do Espaço, que determina: “O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, poderá ser explorado e utilizado livremente por todos os Estados sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o direito internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes.”

Explorar (que, no caso, significa estudar, conhecer profundamente) e utilizar os recursos da Lua – as duas ações não habilitam nenhum país ou empresa a tornar-se dono, proprietário, soberano da área do assentamento lunar. Tanto que o já mencionado Art. 2º, logo a seguir, consagrou o princípio da não-apropriação.

Em se tratando de regulamentar as atividades dos Estados na Lua, há que considerar, além do Tratado do Espaço, o Acordo da Lua4, aprovado por aclamação pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1979, inclusive com o voto favorável dos EUA, mas que conta hoje com apenas três assinaturas e 13 ratificações. Os países com mais destaque nas atividades espaciais não ratificaram esse acordo, entre eles os EUA. Mesmo assim, sua longa discussão (cerca de 10 anos) e parcial adoção representam uma experiência muito rica que não pode ser deixada de lado no momento em que se retomarem as negociações para a ampla regulamentação específica ainda pendente sobre como os países poderão explorar, coletar e utilizar os recursos lunares – algo que talvez comece a ocorrer dentro de 20 a 30 anos.

De qualquer forma, não há a mínima indicação de que a comunidade internacional venha um dia a concordar com a eliminação do princípio da “não-apropriação” do espaço e dos corpos celestes. Isso representaria um retrocesso à época da formação dos impérios coloniais, que, felizmente, já estão no museu da história.

Daí o ridículo que soa hoje pregar a criação de uma colônia ou de um Estado na Lua.

Referências

1) Verne, Júlio, Da Terra à Lua; tradução e adaptação de Maria Alice de Sampaio Dori. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2005.
2) Folha de S. Paulo, 28 de janeiro de 2012, p. A16.
3) Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, inclusive a Lua e demais Corpos Celestes, aberto à assinatura em 27 de janeiro de 1967, em vigor desde 10 de outubro do mesmo ano; e ratificado pelo Brasil em 5 de março de 1969.
4) Acordo que Regula as Atividades dos Estados na Lua e em Outros Corpos Celestes, aberto à assinatura em 18 de dezembro de 1979, em vigor desde 11 de julho de 1984; não assinado, nem ratificado pelo Brasil.
.

Um comentário:

Luiz Felipe Vasques disse...

Eu lembro de Tordesilhas, o que era pra ser, e no que resultou.

Recomendo a série de animação japonesa 'Planetés'. Longe de ser algo insosso de ação que se vê na tv aberta, é uma série de ficção-científica tendo como pano de fundo político atos terroristas contra o 'Tratado da Lua', que faz a partilha da mesma em prol de quem gastou mais com missões tripuladas ou não até lá. Quem ficou de fora, babau - ou se junta com quem teve participação menor, como paises terceirizados que fizeram placas de microcircuito da sonda tal. É muito interessante.