segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Por que e como criar uma legislação nacional sobre espaço?


José Monserrat Filho *

O novo Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE), que cobre o período de dez anos, de 2012 a 2021, trata de responder a inúmeras perguntas relevantes, entre elas esta: Por que devemos bem regular nossas atividades espaciais?

Eis sua resposta – uma boa introdução à questão aqui tratada:

“Mais e mais países adotam leis nacional para ordenar suas atividades espaciais em harmonia com as normas internacionais aprovadas no âmbito das Nações Unidas. Pelo Artigo 6º do Tratado do Espaço de 1967 [o código maior das atividades espaciais, ratificado hoje por 101 países, inclusive o Brasil], cada país responde internacionalmente por suas atividades espaciais nacionais, sejam elas realizadas por entidades públicas ou privadas. Cabe ao país autorizá-las (ou não) e exercer vigilância contínua sobre elas. Diante do programa espacial ampliado que o Brasil executará nos próximos anos, precisamos criar uma lei geral das atividades espaciais, com normas que atendam aos padrões internacionais em matéria de segurança espacial, qualidade de produtos e serviços, bem como de acordos e contratos de aceitação universal.”

A legislação espacial brasileira – ou seja, o Direito Espacial Brasileiro – é hoje composta pelas leis que criaram os órgãos do setor e regulamentam  seu funcionamento e interação, como, por exemplo, as que instituíram a Agência Espacial Brasileira – AEB (Lei 8854, de 10de fevereiro de 1994) e o Sistema Nacional de Atividades Espaciais – SINDAE (Lei 1.953, de 10 de julho de 1996). Também integram a nossa legislação espacial outras leis necessárias ao desenvolvimento da área, bem como as portarias, aprovadas pelo Conselho Superior da AEB, que ordenam o licenciamento de atividades ligadas a lançamentos espaciais (de 2001) e a autorização de lançamentos espaciais, a partir do território brasileiro (de 2002). Cabe acrescentar a essa lista não apenas os numerosos tratados e acordos internacionais e regionais sobre atividades espaciais, mas também, e em especial, a Constituição Federal, adotada em 1988, cujo Artigo 21 estabelece que compete à União “explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão... a navegação aeroespacial...”.

O Brasil ratificou quatro dos cinco tratados das Nações Unidas sobre espaço exterior: Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, Inclusive a Lua e Demais Corpos Celestes (mais conhecido como “Tratado do Espaço”), de 1967; Acordo sobre o Salvamento de Astronautas e Restituição de Astronautas e de Objetos Lançados ao Espaço Cósmico (“Acordo de Salvamento e Restituição”), de 1968; Convenção sobre Responsabilidade Internacional por Danos Causados por Objetos Espaciais (“Convenção de Responsabilidade”), de 1972; e Convenção Relativa ao Registro de Objetos Lançados ao Espaço Cósmico (“Convenção de Registro”), de 1976. (O Brasil não ratificou o Acordo que Regula as Atividades dos Estados na Lua e Outros Corpos Celestes, o “Acordo da Lua”, de 1079, mas bem que poderia fazê-lo, sobretudo para ajudar a provocar um debate profundo sobre a necessidade de acordo sobre a explotação dos recursos naturais da Lua e de outros corpos celestes, como os asteroides.)

Como membros da Convenção de Registro, desde 2006, o Brasil cumpriu a determinação de seu Artigo 2, § 1: criou e mantém o registro nacional de objetos lançados ao espaço, que começou a funcionar na AEB em 2011. A documentação sobre tal registro nacional também fazem parte da legislação espacial brasileira.

A adoção de legislações espaciais nacionais tem sido estimulada pelo Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (COPUOS, na sigla em inglês), em especial desde os anos 90. Mas esse processo se intensificou nos últimos tempos.

O Subcomitê Jurídico do COPUOS constituiu, em 2009, um Grupo de Trabalho (GT) para tratar do “intercâmbio geral de informações a respeito da legislação nacional relativa à exploração e uso do espaço exterior para fins pacíficos”, ou seja, estudar a situação e as tendências das legislações espaciais nacionais. O GT, presidido pela competente Profa. Irmgard Marboe, da Universidade de Viena, Áustria, tem trabalhado arduamente e já formulou suas conclusões, mas ainda não ofereceu aos países, como planejou, suas recomendações sobre como elaborar uma legislação espacial nacional.

O texto final das recomendações (ver a seguir) segue em debate, mas o Subcomitê Jurídico do COPUOS poderá aprová-lo em sua próxima reunião (8-19 de abril de 2013).

Antecipo duas propostas que, creio, poderiam enriquecer o referido texto:

1) Haveria que mencionar o fato de que, sendo as atividades espaciais, acima de tudo, uma questão global de interesse vital para todos os países, pois ocorrem principalmente no espaço exterior – um bem comum de todos eles –, as legislações nacionais garantem a aplicação efetiva da legislação internacional na ação dos países e, assim, são peças essenciais na formação e consolidação do estado de direito, ou seja, o império da lei nas atividades espaciais em todo o seu conjunto; e

2) Caberia ainda frisar a relevância das legislações nacionais no avanço da cooperação espacial internacional, no sentido de fortalecer o desenvolvimento conjunto dos países, baseado nos princípios do respeito mútuo e dos benefícios compartilhados. O Artigo 9º do Tratado do Espaço poderia ser parcialmente reproduzido, nos seguintes termos: A legislação espacial nacional deveria “fundamentar-se sobre os princípios da cooperação e da assistência mútua (…), levando devidamente em conta os interesses correspondentes dos demais Estados”. Isso contribuiria também para impedir que as leis nacionais dos países mais avançados se imponham aos demais países, sempre e quando a legislação internacional seja omissa sobre certa questão ou tenha sido impossível, por falta de consenso, criar um acordo internacional a respeito.

Convido os leitores interessados a nos enviarem suas críticas e sugestões.

E agora eis a íntegra do texto hoje em discussão, com tradução não oficial:

“Recomendações sobre legislações nacionais relativas à exploração e uso pacífico do espaço exterior

A Assembleia Geral,

Enfatizando a importância dos meios apropriados para assegurar que o espaço exterior seja utilizado para fins pacíficos e que as obrigações de direito internacional e as contidas especificamente nos tratados das Nações Unidas sobre o espaço exterior¹ sejam implementadas;

Recordando a resolução 59/115, de 10 de dezembro de 2004, sobre a aplicação do conceito de “Estado lançador” e a resolução 62/101, de 17 de dezembro de 2007, que contém recomendações para a melhoria das práticas dos Estados e organizações internacionais e intergovernamentais no processo de registro de objetos espaciais,

Tomando nota do trabalho do Subcomitê Jurídico do Comitê das Nações Unidas sobre o Uso Pacífico do Espaço Exterior e do relatório de seu Grupo de Trabalho sobre Legislações Nacionais Relativas à Exploração e Uso Pacífico do Espaço Exterior a respeito do trabalho realizado no âmbito de seu plano plurianual.²

Notando que nada nas conclusões do Grupo de Trabalho ou nas presentes recomendações constitui interpretação autorizada ou proposta de emenda aos tratados das Nações Unidas sobre o espaço exterior,

Observando que, em vista da crescente participação de entidades não-governamentais em atividades espaciais, torna-se necessária uma ação apropriada no nível nacional com respeito, em particular, à autorização e supervisão das atividades espaciais não-governamentais,

Tomando nota da necessidade de manter o uso sustentável do espaço exterior, em particular, por meio da redução dos detritos espaciais, bem como de garantir a segurança das atividades espaciais e minimizar os danos potenciais ao meio ambiente,

Recordando os dispositivos dos tratados das Nações Unidas sobre o espaço exterior destinados a informar, na maior extensão factível e prática, a respeito da natureza, da condução, dos locais e dos resultados das atividades espaciais, em particular por meio do registro,

Notando a necessidade de consistência e previsibilidade no processo de autorização e supervisão das atividades espaciais, e a necessidade de um sistema prático de regulamentação sobre o envolvimento de entidades não-governamentais para prover mais incentivos à adoção de marcos regulatórios no nível nacional, e notando que alguns Estados também incluem, nesse âmbito, atividades espaciais nacionais de caráter governamental,

Reconhecendo as diferentes abordagens adotadas pelos Estados ao lidar com vários aspectos das atividades espaciais nacionais, nomeadamente por meio de atos unificados ou da combinação de instrumentos legais nacionais, e notando que os Estados adaptaram seus marcos jurídicos nacionais de acordo com suas necessidades específicas e considerações práticas, e que os requisitos legais dependem, em grau elevado, da gama de atividades espaciais conduzidas e o nível de envolvimento das entidades não-governamentais.

Recomenda os seguintes elementos à consideração dos Estados, conforme for apropriado, quando da adoção de marcos regulatórios sobre as atividades espaciais, de acordo com seu direito nacional e levando em conta suas necessidades específicas:

1. O escopo das atividades espaciais visado pelo marco regulatório nacional pode incluir, conforme for apropriado, o lançamento de  objetos no espaço e seu retorno do espaço, a operação de um sitio de lançamento ou reentrada, e a operação e controle de objetos espaciais em órbita; outras questões a considerar podem incluir o projeto e a fabricação de espaçonaves, a aplicação de ciência e tecnologia espaciais, bem como as atividades de exploração e pesquisa.

2. O Estado, tendo em conta suas obrigações como Estado lançador e como responsável pelas atividades nacionais no espaço exterior de acordo com os Tratados das Nações Unidas sobre o espaço exterior, deve estipular a jurisdição nacional sobre as atividades espaciais realizadas a partir de seu território nacional, bem como as atividades  espaciais realizadas em outro lugar, nas quais estejam envolvidos seus cidadãos e/ou suas pessoas jurídicas estabelecidas, registradas ou instaladas em seu território; nesse caso, porém, se outro Estado exercer jurisdição sobre tais atividades, o Estado deve considerar a possibilidade de abster-se de formular exigências duplicadas e evitar encargos desnecessários aos operadores de objetos espaciais.

3. As atividades espaciais devem requerer a autorização de autoridade nacional competente; essa autoridade ou autoridades e procedimentos, bem como as condições para conceder, modificar, suspender ou revogar a autorização devem ser definidas claramente no marco regulatório; Os Estados podem utilizar procedimentos separados, de um lado, para o licenciamento de operadores que conduzam atividades espaciais e, de outro, para a  autorização de projetos e programas específicos.

4. As condições para a autorização devem se harmonizar com as obrigações dos Estados, em particular com as estabelecidas nos tratados das Nações Unidas sobre o espaço exterior e em outros documentos pertinentes, e podem conceder a devida atenção aos interesses dos Estados em matéria de segurança nacional e política externa; as condições para a autorização devem ajudar a assegurar que as atividades espaciais sejam realizadas de modo seguro, minimizem os riscos a pessoas, ao meio ambiente e aos bens, e não gerem interferência danosa em outras atividades espaciais; essas condições podem ainda relacionar-se com as qualificações tecnológicas do candidato e incluir normas técnicas e de segurança, alinhadas, em particular, com as Diretrizes para a Redução dos Detritos Espaciais do Comitê para o Uso Pacífico do Espaço Exterior.³

5. Procedimentos adequados devem assegurar a supervisão e o monitoramento contínuos das atividades espaciais autorizadas, usando-se, por exemplo, um sistema de inspeção in situ ou exigindo-se relatórios mais gerais; os mecanismos de execução podem incluir medidas administrativas, como a suspensão ou revogação da autorização e/ou punições, quando apropriado.

6. Um registro nacional de objetos lançados ao espaço exterior deve ser mantido por autoridade nacional adequada; aos operadores deve ser requerida a prestação de informações ao Secretário Geral Geral das Nações Unidas, em conformidade com a os instrumentos internacionais aplicáveis, inclusive a Convenção Relativa ao Registro de Objetos Lançados ao Espaço Cósmico4 e considerando as Resoluções da Assembleia Geral 1721 (XVI) B, de 20 de dezembro de 1961, e a 62/101, de 17 de dezembro de 2007; o Estado pode também requerer dos operadores a prestação de informação sobre qualquer mudança nas principais características dos objetos espaciais, em especial, dos que se tornaram não-funcionais.

7. O Estado pode articular meios para conseguir recursos junto aos operadores caso estiver envolvida sua responsabilidade por danos, estabelecida nos tratados das Nações Unidas sobre o espaço exterior; para assegurar a cobertura adequada a pedidos de indenização, o Estado pode introduzir a exigência de seguro e procedimentos de indenização, conforme for apropriado.

8. A supervisão contínua das atividades espaciais não governamentais de entidades não governamentais deve ser assegurada, em caso de transferência de propriedade ou controle de um objeto espacial em órbita; leis nacionais podem requerer, para a concessão de autorizações sobre a transferência de propriedade ou de obrigações, a prestação de informações sobre a mudança do status de um objeto espacial em órbita.”

Referências

1. Treaty on Principles Governing the Activities of States in the Exploration and Use of Outer Space, including the Moon and Other Celestial Bodies (United Nations, Treaty Series, vol. 610, No. 8843); Agreement on the Rescue of Astronauts, the Return of Astronauts and the Return of Objects Launched into Outer Space (United Nations, Treaty Series, vol. 672, No. 9574); Convention on International Liability for Damage Caused by Space Objects (United Nations, Treaty Series, vol. 961, No. 13810); Convention on Registration of Objects Launched into Outer Space (United Nations, Treaty Series, vol. 1023, No. 15020); and Agreement Governing the Activities of States on the Moon and Other Celestial Bodies (United Nations, Treaty Series, vol. 1363, No. 23002). Os textos em português destes acordos estão no site da Sociedade Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA) – www.sbda.org.br.
2. A/AC.105/C.2/101.
3. Official Records of the General Assembly, Sixty-second Session, Supplement No. 20 (A/62/20), annex.
4. United Nations, Treaty Series, vol. 1023, No. 15020. Ver o texto em português no site www.sbda.org.br.
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Um comentário:

Tom Bike disse...

Acabei de ler um artigo da Harvard Law School sobre Guerra no Espaço, os aspectos legais. Deveríamos também nos preocupar com isso? Aqui o link http://harvardnsj.org/2012/11/targeting-in-outer-space-legal-aspects-of-operational-military-actions-in-space/