quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Acesso ao espaço e soberania nacional

.
Presidente da Agência Espacial Brasileira (AEB)

Carlos Ganem

A capacidade de lançar satélites artificiais ao espaço é um dos fatores de fortalecimento da soberania nacional. Para entender a razão, é útil lembrarmos o caso do lançador europeu Ariane, que é lançado da Guiana Francesa, vizinha do Brasil. Sua história começa no início dos anos 1970, quando a Europa tinha duas organizações espaciais: a Organização Europeia de Pesquisas Espaciais (Esro) e a Organização Europeia de Desenvolvimento de Lançadores (Eldo). Essa última já havia sofrido 11 falhas de lançamento com seu foguete, o Europa, quando os países membros da Eldo decidiram que o projeto todo era um fracasso e seria descontinuado, frustrando o ideal europeu de se tornar independente dos Estados Unidos. Era a época da guerra fria e somente a União Soviética e os EUA detinham capacidade de lançamento de satélites.

Mas um fato importante fez a Europa mudar de ideia. Os EUA decidiram não permitir o lançamento de satélites europeus de comunicação, a não ser com severas restrições sobre como eles seriam utilizados. Na verdade, estava em jogo o interesse de proteger a indústria americana e impedir o desenvolvimento de uma indústria europeia de fabricação de satélites de comunicações. Assim, em 1973, as duas agências desapareceram para dar lugar à Agência Espacial Europeia (ESA), que aprovou a criação da empresa Arianespace, na França, onde começou o desenvolvimento do foguete Ariane.

Em 1978, o novo foguete foi lançado com sucesso a partir do centro de lançamentos europeu de Kourou, na Guiana Francesa. Aliás, cabe notar que a escolha de Kourou deveu-se à sua posição próxima da linha do equador, com o oceano a leste. Essa posição permite lançamento sobre o mar (mais seguro), aproveitando ainda a rotação da Terra, que dá velocidade adicional ao foguete. Em 1980, a Arianespace tornou-se a primeira empresa comercial de lançamento de satélites — hoje é a maior delas.

Essa história nos faz refletir sobre a nossa própria situação. Sabemos fazer satélites, como os de coleta de dados, SCD 1 e 2, ou os Sino-Brasileiros de Recursos Terrestres (Cbers), desenvolvidos em cooperação com a China. Temos um centro de lançamentos em Alcântara, no Maranhão, com condições até melhores que Kourou, por estar mais próximo da linha do equador. Também fazemos veículos de sondagem, como o excelente VSB-30, e estamos desenvolvendo nosso próprio Veículo Lançador de Satélites, o VLS. Entretanto, enquanto ele não estiver pronto e a tecnologia plenamente dominada, vamos continuar dependendo de lançadores estrangeiros e estar sujeitos a qualquer tipo de restrição, seja comercial, como a Europa sofreu, seja política.

Não estamos mais na guerra fria, mas a lógica Leste-Oeste que prevalecia naquela época, baseada em ideologias, deu lugar a uma separação Norte-Sul, em que as barreiras comerciais e o cerceamento tecnológico são ingredientes preponderantes. Daí a importância do tema para o nosso Programa Nacional de Atividades Espaciais (Pnae), sob coordenação da Agência Espacial Brasileira, vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT).

O desenvolvimento autóctone das tecnologias necessárias, levado a cabo pelos executores do Pnae, o Instituto Nacional de Atividades Espaciais (Inpe) e o Comando Geral de Tecnologia Aeroespacial (CTA), além da manutenção e atualização dos Centros de Lançamento de Alcântara (CLA) e da Barreira do Inferno (clbi), em Natal (RN), são prioridades do programa. Além disso, como parte da política externa brasileira, começamos a estabelecer ou renovar parcerias estratégicas com outros países, entre os quais a França e a Rússia. Em um mundo em que o poder está cada vez mais fragmentado, essas alianças permitirão projetos conjuntos dentro de um quadro de proteção e salvaguarda mútua da propriedade intelectual.

Como solução intermediária e ao mesmo tempo grande oportunidade de negócio, o Brasil estabeleceu, em 2004, um tratado com a Ucrânia. Eles têm o foguete Cyclone-4, e nós, a melhor localização para lançamentos do mundo. Foi criada então a empresa binacional Alcantara-Cyclone Space (ACS), responsável pela comercialização dos lançamentos no mercado mundial. Com isso teremos, em curto prazo, maior grau de autonomia no acesso ao espaço e uma fonte de recursos para o programa espacial, vinda dos lucros da ACS.

No passado se dizia que dominar os mares era dominar o mundo. Hoje, até por força de tratados internacionais, como o Tratado da Lua e dos Corpos Celestes, não se pode dominar o espaço, pois ele pertence a toda a humanidade. Mas a plena capacidade de acesso e, consequentemente, de participar dos benefícios de se colocar em órbita satélites que servirão para comunicações, meteorologia, observação da Terra e posicionamento, por exemplo, ainda é privilégio de poucos. Dessa capacidade e de recursos estáveis e permanentes depende o nosso poder de decidir quando e o que colocar no espaço. E isso é soberania.

Fonte: Jornal Correio Braziliense, 22/10/2009, via NOTIMP.
.

Nenhum comentário: