.
Gestão do Tráfego Espacial: novos debates
José Monserrat Filho*
Lubos Perek deve ser o pioneiro deste tema. Ao longo de seus 95 anos, o renomado astrônomo tcheco tornou-se perito em Direito Espacial sem deixar de ser astrônomo. É uma pessoa modesta, silenciosa e culta. Tive o privilégio de conversar com ele em vários eventos internacionais. Distinguido membro da Academia de Ciências da República Tcheca e da União Astronômica Internacional, Lubos Perek é nome do asteroide 2900, descoberto em 1972 por outro reconhecido astrônomo tcheco, Lubos Kohoutek.
Dez anos após, em 1982, Perek apresentou, no Colóquio Anual do Instituto Internacional de Direito Espacial, o ensaio intitulado “Regras de Tráfico para o Espaço Exterior”, peça obrigatória na bibliografia do assunto – hoje mais atual que nunca.
Perek nos dá clara noção da utilidade da gestão do tráfico espacial: Saber exatamente onde se encontra cada satélite ou nave espacial, no espaço aéreo ou no espaço exterior, de onde ele vem e para onde ele está indo, o que ele está fazendo e como está funcionando em dado momento, tendo em vista garantir a segurança das atividades espaciais, prevenindo colisões e interferências danosas, bem como proteger o meio ambiente da Terra e do espaço exterior.¹
Em 2006, a Academia Internacional de Astronáutica (IAA, na sigla em inglês) lançou o “Estudo Cósmico” sobre “Gestão do Tráfico Espacial”, produzido por um grupo de seus membros (inclusive Lubos Perek). O trabalho define o termo “Gestão do tráfego espacial” como “o conjunto de regras técnicas e normativas para promover acesso seguro ao espaço exterior, as operações no espaço exterior e o retorno do espaço à Terra livre de interferência física ou de rádio frequência.”
Essa definição confirma o princípio do livre acesso ao espaço consagrado pelo Tratado do Espaço de 1967. Sua ideia central é a de que os países, para lograrem o bem comum no espaço, devem obedecer a normas específicas, criadas em seu próprio interesse.
Hoje, oito anos depois, a IAA volta a convocar uma equipe para rever e atualizar o tema da gestão do tráfico espacial. O plano de agora abandona “a imagem inicial de abstração visionária” e assume “o potencial de lidar de forma efetiva com os desafios correntes e emergentes de manter as atividades espaciais protegidas e seguras, sem interferir no que fazem todos os seus atores e ações presentes e futuras”, como frisa o primeiro comunicado da nova equipe de estudos da IAA, datado de 15 de dezembro de 2014.
O grupo, presidido por Kai-Uwe Schrogel, da Agência Espacial Europeia, tem dois anos para concluir a missão. O novo estudo deve ser lançado em 2016, ano do 10º aniversário do primeiro texto. A nova equipe tem composição ainda mais diversificada que a de 2006. Reúne cientistas, cientistas políticos, juristas, engenheiros, gestores, membros de órgãos governamentais, de organizações internacionais, de ONGs e da indústria. São, ao todo, 30 pessoas, de 17 países, entre as quais tive a honra de ser incluído.
Perek desta vez não está presente. Talvez por sua idade avançada.
Nosso mais recente encontro ocorreu durante o Congresso Internacional de Astronáutica de Nápoles, Itália, em 2012, onde ele apresentou excelente trabalho sobre “A situação atual da órbita geoestacionária”, mostrando o crescente congestionamento ali de lixo espacial e os perigos que isso implica para a população da Terra. Segundo apurou Perek, em 2011 havia na órbita geoestacionária 406 satélites ativos e 900 inativos devidamente catalogados. Ou seja, o número de satélites inativos era mais que o dobro do número de ativos. Isso sem falar na quantidade de detritos espaciais não catalogados – em geral com menos de 10cm –, que pode ser apenas estimada.
Indiretamente, Perek demonstrava, uma vez mais, o imperativo da gestão do tráfico espacial, que tem no lixo espacial um de suas maiores obstáculos a superar. Quando fui cumprimentá-lo pela apresentação, ele me confessou, com um sorriso meio triste: “Para mim, está ficando cada vez mais difícil e cansativo pesquisar e escrever trabalhos como esse.”
Mas as sementes plantadas por Perek e outros pesquisadores do tema têm tudo para dar frutos ainda mais majestosos e proveitosos. Se o estudo de 2006 fixou os conceitos básicos, o de 2016 deverá ir adiante e propor um plano concreto para pôr em prática a gestão do tráfico espacial.
Em 2017, o Tratado do Espaço de 1967 comemora 50 anos, como o código maior das atividades espaciais, ratificado por 103 países e assinado por 25, além de aceito como costume por todos os demais países – portanto, uma unanimidade global.
Por isso, o estudo de 2016 sobre a Gestão do Tráfico Espacial não poderia deixar de incluir em sua agenda a discussão do futuro do Tratado do Espaço e de toda a regulamentação das atividades espaciais – cada vez mais intensas e indispensáveis no mundo inteiro.
Se a gestão do tráfico aéreo é tão importante quanto complexa na Terra, que dizer da gestão do tráfico no espaço?!
O ordenamento do tráfico espacial, se realizado para o bem e no interesse de todos os países, como reza o Tratado do Espaço, contribuirá em muito para elevar a conquista espacial a novo patamar de segurança, confiança, solidariedade e civilização.
Quem anda pelo espaço, carrega consigo toda a evolução da Terra.
Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Espacial (SBDA). Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB).
Referências
1) Perek, Lubos, Traffic Rules for Outer Space, Proceedings of the 25th Colloquium on the Law of Outer Space, AIAA, 1983, pp. 37-42
.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
Por favor, esclareçam o leitor que se trata de "tráfego" e não "tráfico" como aparece no artigo.
Postar um comentário