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Reproduzimos abaixo, novo artigo de autoria de José Monserrat Filho:
Diálogo EUA-China sobre temas espaciais sensíveis
José Monserrat Filho*
“The argument that China and the United States are condemned to collision assumes that they deal with each other as competing blocs across the Pacific. But this is the road to disaster for both sides.”¹ Henry Kissinger, On China, New York: The Pengun Press, 2011, p. 528
Os Estados Unidos (EUA) vêm de propor um diálogo regular com a China sobre problemas espaciais. A iniciativa, anunciada à imprensa pelo vice-secretário assistente de Defesa dos EUA, Gregory L. Schulte, é definida como parte do esforço para a criação de novas normas espaciais e para a redução do risco de acidentes, evitando-se mal-entendidos, equívocos de interpretação e erros de cálculo no espaço. No fundo, muito provavelmente, a ideia principal é a de prevenir possíveis controvérsias e conflitos entre os dois países – hoje as maiores potências do planeta.
Que têm o Brasil e o resto do mundo a ver com isso? Tudo a ver. Primeiro, porque a questão é de segurança universal. Qualquer coisa que vá para o espaço e de lá venha, de bom e de ruim, afeta interesses fundamentais da comunidade mundial – querendo ou não, ninguém fica de fora. Segundo, porque a possibilidade de acidentes, incidentes, mal-entendidos e sobretudo choques ameaça a ordem vigente, a sustentabilidade e a realização normal, segura e produtiva das atividades espaciais, das quais dependem hoje por inteiro a vida quotidiana e o trabalho de todos os povos e países, desenvolvidos e subdesenvolvidos, avançados e atrasados, obesos e famintos, ricos e pobres.
Meta: manter posição dominante no espaço
Não por acaso, a proposta americana mereceu atenção especial do secretário-geral da Associação Chinesa de Controle de Armas e Desarmamento, Li Hong. Ele não tardou a escrever o comentário “Tornar o Espaço Seguro para Todos”, publicado no jornal China Daily, de Beijing, em 4 de agosto último, e reproduzido no portal Space Daily, de 7 de agosto.
Li Hong começa lembrando que a segurança espacial há muito tempo preocupa a área de controle de armas. Desde o fim dos anos 90, frisa ele, China e Rússia exortam a comunidade internacional a promover um diálogo multilateral para impedir a instalação de armas no espaço. Na Conferência das Nações Unidas sobre Desarmamento, em Genebra, os dois países já apresentaram projetos de tratado proibindo o uso da força e a colocação de armas em órbitas da Terra.²
Mas, segundo Li Hong, os EUA têm sempre se negado a negociar tais acordos, temerosos de que eles restrinjam o desenvolvimento e a manutenção de seu sistema anti-míssil, bem como impeçam o uso e o aperfeiçoamento de sua tecnologia espacial militar.
Para o especialista chinês, “alguns círculos conservadores dos EUA estão convencidos de que o país pode usar seus sistemas e recursos para manter posição dominante no espaço”. Na visão destes meios, “os EUA não precisam conversar a respeito com outros países, pois esses têm situação muito inferior no uso do espaço para fins militares”. Por isso, diz Li Hong, “os EUA dão ênfase à liberdade de uso do espaço. Em essência, eles querem firmar sua hegemonia espacial”.
Todos os países podem usar livremente o espaço. Podem?
O princípio da liberdade de uso do espaço está consagrado no Artigo 1º, § 2º, do Tratado do Espaço, de 1967, o código maior das atividades espaciais. Ele reza: “O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, poderá ser explorado e utilizado livremente por todos os Estados sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o direito internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes”.
A liberdade de uso do espaço, pois, é universalmente reconhecida, mas não é incondicional: não pode discriminar os demais países, nem ignorar o direito de todos eles de explorarem e usarem livremente o espaço. Ou seja, todos os países são legalmente iguais perante o espaço.
Caso contrário, o Tratado do Espaço não poderia ter adotada, no Artigo 1º, § 1º, a “cláusula do bem comum”, que dá sentido superior às atividades espaciais. Vale a pena refletir sobre o que ela estabelece: “A exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem e o interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade”.³
Incertezas diante dos desafios da segurança espacial
Na opinião de Li Hong, “os EUA, afetados pela crise financeira, viram-se forçados a restringir o desenvolvimento de sua tecnologia espacial e pôr termo ao programa dos ônibus espaciais. O que pode ser ser visto” como revés dos EUA no desenvolvimento tecnológico espacial.
“E mais importante”, acrescenta ele, “os EUA se deram conta de que sua vantagem no espaço enfrenta sérios desafios, já que a distância entre eles e os outros países está diminuindo”. Li Hong conclui, então, que “os EUA devem mudar sua política de segurança espacial”. Ele recorda que a Política Espacial Nacional e a Política Nacional de Segurança Espacial, lançadas pelos EUA, “enfatizam a cooperação em tecnologia espacial com seus aliados e o diálogo com a Rússia, China e outros países, para evitar condutas irresponsáveis no espaço”.
Vale questionar: Será que só a Rússia, a China e os outros países seriam capazes de “condutas irresponsáveis no espaço”? Que país pode se outorgar o privilégio de julgar se a conduta de outro país no espaço é responsável ou não?
O especialista chinês vê os EUA como totalmente autocentrados, até mesmo na relação com os aliados: “os EUA procuram cooperar com seus aliados para integrar e usar os recursos deles, capazes de compensar sua própria carência de investimento e ajudar a manter sua própria liderança em tecnologia espacial”. Daí que, para Li Hong, o diálogo proposto pelos EUA seria focado “em seus dois potenciais concorrentes, Rússia e China, para regular e restringir seu desenvolvimento e prevenir que eles desafiem a hegemonia espacial norte-americana”. Isso ele considera “mentalidade típica da Guerra Fria”. A seu ver, “a ânsia dos EUA em dialogar com a China reflete sua incerteza diante dos desafios de segurança espacial”.
Proposta: estabelecer novo quadro jurídico internacional
Dado que há novidades no ar e que “as atividades espaciais humanas estão se tornando cada vez mais intensas”, Li Hong sustenta que é “do interesse de todos os países estabelecer novo quadro de acordos e normas internacionais sobre o uso do espaço”.
Para ele, “é incumbência de todos os países promover consultas e discussões para eliminar dejetos espaciais, prevenir colisões de satélites, assegurar razoável alocação de recursos e o estabelecimento de um código de conduta. Além disso, é absolutamente preciso levar em conta em seu conjunto as necessidades e preocupações de todos os países usuários do espaço. É preciso também, ao se formularem as normas espaciais, garantir, mediante consultas, a participação e o consenso universais em relação a elas”.
Neste sentido, sublinha Li Hong, “o desejo dos EUA de conversar com a Rússia e a China é bem-vindo”. Mas, adverte, “os EUA devem reconhecer que as conversas sobre segurança espacial envolvem os interesses de todos os países”, e que “a elaboração de normas e regras de conduta internacional não deve ser monopolizada por algumas potências”.
Ele opina que “no processo de coordenação e diálogo, as grandes potências devem promover mais ativamente o diálogo e a cooperação multilaterais no âmbito das Nações Unidas”, e que “regras internacionais sobre o espaço verdadeiramente eficazes e universalmente aceitas só podem ser estabelecidas se estiverem baseadas na participação igual de todos os países”.
São ideias construtivas e estimulantes. Mas Li Hong deixa um vazio embaraçoso ao não mencionar os acordos espaciais hoje em vigor, a começar pelo referido Tratado do Espaço de 1967, cujos princípios constituem conquistas difíceis de subestimar. Impossível esquecer o que disse Manfred Lachs, ex-presidente da Corte Internacional de Haya, sobre o Tratado do Espaço, no momento de seu lançamento oficial: “Esse é o primeiro capítulo do grande livro sobre o direito de amanhã... A aventura do ser humano no espaço deve ampliar o seu senso de responsabilidade”.4
Corrida armamentista no espaço
Li Hong assevera que “a China sempre defendeu o uso pacífico do espaço”, e que nas próximas décadas, “ele estará concentrado no desenvolvimento da economia nacional e na melhoria de vida de mais de 1,3 bilhão de chineses”.
Ele não nega nem omite as atividades espaciais militares de seu país: “A China precisa desenvolver capacidades de defesa no espaço, mas quer evitar deixar-se envolver em uma corrida armamentista espacial”.
Segundo Li Hong, “a China guia-se por estratégia defensiva de defesa” (defensive defense strategy). Parece chover no molhado, mas ele explica: “Não tem a intenção de estabelecer 'hegemonia' e não acredita em, nem aspira à segurança absoluta”; “em vez disso, propugna pela segurança comum [coletiva] por meio da cooperação mutuamente benéfica”.
E aqui vai o prognóstico mais importante de Li Hong: “Daí que, mesmo se a China for capaz no futuro de competir com os EUA em força total, ela lembrará a experiência da antiga União Soviética, que desistiu de participar de uma corrida armamentista espacial com os EUA”.
Isso significa que a China admitiria a possibilidade de “no futuro competir com os EUA em força total”, embora desejando excluir o espaço como objeto e lugar de conflito. Contudo, ressalta o estudioso chinês de controle de armas e desarmamento, “a China sempre quis diálogo e se opôs ao confronto. Por isso, nunca vai rejeitar uma oferta de diálogo. Mas o diálogo deve ser baseado na igualdade e respeito mútuo”.
A realização do diálogo não está isenta de obstáculos, reconhece Li Hong: “Políticas e marcos legais dos EUA, inclusive a venda de armas a Taiwan, restrições às exportações de alta tecnologia da China e o não-uso de foguetes chineses para lançamento de satélites norte-americanos prejudicam seriamente a base política do diálogo China-EUA sobre o espaço”.
Qual será a receita do sucesso para essa relação? Li Hong se esmera na resposta: “China e EUA, além de realizarem o diálogo, devem promover cooperação espacial pragmática e trocar informações sobre o espaço como parte do mecanismo de suas conversações bilaterais, pois as diferenças entre a estratégia de defesa defensiva de Beijing e a estratégia de dissuasão de Washington criaram um fosso entre as áreas de transparência das forças armadas dos dois países”.
Em suma, o entendimento possível e indispensável China-EUA passa necessariamente por um acordo sobre os limites do uso militar do espaço.
* Chefe da Assessoria de Cooperação Espacial da AEB.
Referências
1) Tradução livre: “O argumento de que a China e os Estados Unidos estão condenados à colisão admite que eles tratam um ao outro como blocos que competem através do Pacífico. Mas esse é o caminho do desastre para ambos os lados.”
2) Ver site
3) Ver texto completo do Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, Inclusive a Lua e Demais Corpos Celestes (Tratado do Espaço) no site .
4) Lachs, Manfred, The Treaty on Principles of the Law of Outer Space, Netherlands International Law Review, Martinus Nijhoff Publishers, Vol. XXXIX, 1992/3; Vereshchetin, V. S., The law of outer space in the general legal field (commonality and particularities) , Revista Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial, nº 93, abril, 2010.
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